terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Os intocáveis de São Paulo - Ricardo Young

O consumo de álcool deve ser taxado e servir a um fundo de financiamento para o tratamento de moradores de rua dependentes da bebida

Eles se alimentam em lugares públicos, em utensílios separados. Não podem entrar em prédios ou casas. São evitados, insultados e, por vezes, linchados, queimados e mortos.

Essa é a casta dos "dálits", os intocáveis da Índia. A classificação das pessoas em categorias, associada à religião hindu, é uma maneira de justificar a manutenção da desigualdade social naquele país.

Qualquer semelhança não é mera coincidência. O quadro também poderia retratar as quase 15 mil pessoas que vivem pelas ruas de São Paulo. São os nossos intocáveis. O incômodo que geram, dia após dia, é substituído pelo sentimento de impotência do paulistano. O que sobra é o estigma e a indiferença.

Para o padre Júlio Lancellotti, responsável pela Pastoral da Rua, nossos intocáveis têm sua cidadania negada na vida e na morte. Em outubro, ele levou à Comissão Municipal da Verdade os números do serviço funerário da cidade, que mostram um extermínio semelhante ao que acontecia durante a ditadura.

Em 2012, 845 pessoas foram sepultadas como indigentes. O padre testemunhou ter visto corpos chegarem empalhados para o enterro. E denunciou a ação do tráfico de órgãos, salientando que "há um mercado internacional de hipófise" (glândula localizada no cérebro). A experiência mostra que só há um passo entre ser intocável e ser eliminável.

Formular uma sociedade que não gere moradores de rua implica uma equação complexa, mas é preciso começar a pensá-la. A primeira pergunta é: o que leva essas pessoas à situação de extrema vulnerabilidade?

O crack é um dos aspectos, mas não o mais importante: menos de 20% dos moradores de rua são viciados na droga. Para as entidades que trabalham na recuperação da sociabilidade de quem vive nas ruas, o alcoolismo é questão central, mais presente que o uso de drogas ilícitas.

Segundo o censo da população em situação de rua feito pela Secretaria Municipal de Assistência Social em 2011, o alcoolismo é a segunda maior causa que leva as pessoas para as ruas. A primeira resposta dada por elas é "brigas familiares" --e eu pergunto: não estaria o álcool entre os motivos que mais geram esses desentendimentos?

Daí, é preciso levar em conta o consumo consciente e a responsabilidade social empresarial. A indústria de bebida alcoólica deve se responsabilizar pelas consequências dos produtos que vende. O consumo de álcool na cidade deve ser taxado e servir diretamente a um fundo de financiamento para o tratamento sistêmico da situação, possibilitando a consolidação de políticas públicas conjuntas --que envolvam desde as pastas da saúde e assistência social até as de trabalho e planejamento urbano.

Enquanto a maior reclamação dos movimentos da população em situação de rua é que o setor público age sem falar com eles, a Câmara Municipal tem exatamente esse papel: ser o fórum permanente para o diálogo com a cidade. A Comissão de Direitos Humanos, da qual sou membro, deve ser o espaço para discutir essa questão com prioridade, promovendo a unificação das legislações, convocando autoridades implicadas e fiscalizando ações.

Na cidade sustentável, a rua é uma extensão da vida. Não cuidar de quem mora nela não é apenas perpetuar a exclusão, mas expulsar todos do espaço público, obrigando as pessoas a não se apropriarem do que lhes pertence. Não se trata apenas de incluir os moradores de rua à sociedade, mas incluir a cidade na vida das pessoas.

Ricardo Young, 56, empresário, é vereador de São Paulo pelo PPS. Foi presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social

Fonte: Folha de S. Paulo

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