domingo, 1 de dezembro de 2013

Pela entrada social – José de Souza Martins

Parentes dos presos do presídio da Papuda, maioria mulheres, protestam contra os privilégios da gente diferençada que ali recém-chegou em decorrência das sentenças do STF no processo do mensalão. Os visitantes dos novos presidiários estão imunes às demoras e humilhações a que são regularmente submetidos os visitantes dos outros presos, especialmente mães, irmãs, esposas ou companheiras. Todas tratadas como suspeitas, revistadas, examinadas, fiscalizadas, além do martírio da longa espera, que começa de madrugada nas filas intermináveis.

Na facção da nova humanidade do presídio, alguns presos ainda retêm o direito de ser tratados por "vossa excelência". Romarias de outras tantas excelências, que chegam em carros oficiais e são recebidas no
ambiente diferençado da direção da cadeia, com direito a cafezinho e água gelada, despertam curiosidade e ressentimento dos comuns. Os visitantes dos presos diferençados não são suspeitos. Não passam por revista. É que, ao contrário da sina das mães da porta da Papuda, eles são os pais da pátria. Era o nome que recebiam os patriarcas de antanho, senhores de cabedais, de gente e de poder, os intocáveis e insubmissos.

É o que faz daquilo um laboratório para estudos sociológicos sobre diferenciação social. Se alguém quiser saber o que é pós-modernidade e só ficar de olho nos portões da Papuda. Poderá observar ao vivo e em cores como no Brasil a cidadania não liqüefaz as graves diferenças sociais que nos atormentam desde sempre, não derrete as barras de ferro das separações sociais, embora todos sejam legalmente iguais.

A nova realidade social e política do presídio gera a distinção social entre a "gente diferençada" e a "gentalha", separadas pelo fio da navalha do direito: os que são mais e têm mais do que o direito concede e os que são de somenos e têm menos do que o direito pode conceder. Lembrando frase famosa de ministro do trabalho oriundo das hostes sindicais, "bicho também é gente", pode-se dizer que "gente também é gente".

Coisa de que nos esquecemos com facilidade, ainda referidos que somos, em nossos relacionamentos, às estruturas sociais profundas, estamentais, das desigualdades radicais, que conformaram a sociedade brasileira desde os tempos da conquista. Inicialmente, em relação aos índios descidos do sertão e submetidos ao cativeiro, houve durante largo tempo sérias dúvidas, entre a gente de prol, como se dizia, se tinham alma ou não. Ou seja, se eram gente ou não ou se eram meros símios da mata. E isso não está tão longe assim. Não faz mais que 20 anos, num povoado à beira do Rio Araguaia, interpelei um menino mestiço que insultava um índio carajá, que passava cabisbaixo. Perguntei-lhe por que fazia aquilo, se o índio era gente como nós. "É não!" - respondeu-me. "Ele é gentio e eu sou cristão." Vemos aí, claramente, qual foi a argamassa que cimentou os alicerces do lado esdrúxulo da sociedade brasileira.

Durante séculos, os artesãos foram considerados de qualidade social inferior porque trabalhavam com as mãos. Não faziam parte do rol dos homens bons, a chamada gente de qualidade, para que pudessem ocupar funções nas câmaras municipais. O ócio dignificava, não o trabalho, que minimizava. Com a República, todos se tornaram iguais perante alei, mas alguns se mantiveram ou se tornaram mais iguais, para lembrar uma frase inspiradora de George Orwell em A Revolução dos Bichos. Além do mais, tudo tem que mudar para que tudo permaneça como estava, é o que nos lembra Lampedusa em O Leopardo.

Temos por aí outros sinais dessas persistências. Quem for preso, por algum motivo, enquanto não for julgado e condenado, se tiver curso superior, terá direito a prisão especial Nada de ficar naquela montoeira de gente que se apinha nas delegacias de polícia, com menos ar por metro quadrado que o necessário. Se alguém respirar mais fundo, pode matar os vizinhos de cela.

Os diferençados, aliás, vem sendo tratados como heróis nacionais. Inocentados no berro, têm a contrapartida dos acólitos que sevingam satanizando a Justiça, em particular satanizando o ministro Joaquim Barbosa, presidente do STF. Ora, não foi Joaquim Barbosa o autor dos fatos que, pela primeira vez na história do Brasil, resultaram na diferenciação social da população carcerária do agora mais notório presídio brasileiro.
A sociedade de classes, centro das reflexões de ilustre petista e sociólogo mais ilustre ainda, o professor Florestan Fernandes, finalmente chega à prisão. O Brasil dividido e hierárquico também está lá. Não é mais prisão de uma classe só. O protesto do povão mostra que não entendeu o caso do mensalão, que o Brasil dos privilégios mudou sem mudar. O petista gaúcho Olívio Dutra usa a ótima expressão "sucessão de malfeitos" para dar nome aos fatos originários do processo do mensalão. O que quer dizer, coisa de imaturos, de gente que brinca com o que não deveria brincar. Diferentes dos presos das mães da porta.

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de A política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto)

Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás

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