quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Uma era progressiva e contraditória - Cristian Klein

"É a arte de obter votos de pobres e dinheiro dos ricos"

Nos últimos anos, notícias de que congressos e seminários organizados por magistrados são bancados por empresas privadas vêm frequentemente à tona no debate público. Até em competições esportivas de confraternização, realizadas em resorts, é possível que juízes entrem em campo vestindo uniforme com a logomarca de patrocinadores. Os casos puseram a imparcialidade do Judiciário em xeque e levaram a reações de instituições e da sociedade. Afinal, estas mesmas empresas "generosas" podem ser parte em algum processo judicial a ser decidido por seus patrocinados.

A proximidade gera a mesma desconfiança dispensada à relação entre políticos e doadores de campanha. Não houve, no episódio do Judiciário, no entanto, o mesmo estardalhaço que se dirige agora contra o financiamento eleitoral realizado por empresas privadas - tema que começou a ser apreciado ontem na Ação Direta de Inconstitucionalidade enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Depois da proposta inicial de vedar qualquer patrocínio de empresas privadas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recuou e estabeleceu, em 19 de fevereiro, que eventos de magistrados podem receber recursos que correspondam a no máximo 30% dos custos totais de organização. O limite pôs panos quentes no assunto - que desapareceu da pauta - e não resolveu a questão de fundo. A Resolução 170 do CNJ é aquele típico procedimento cujo propósito é mudar para deixar tudo como está. O problema, na essência, não se alterou e a norma permite que empresas continuem a ser mecenas de juízes, com a criação de um limite arbitrário. É de 30% como poderia ser de 5%, 50% ou 90%. Mais importante: o lobby das associações de magistrados livrou estas entidades de classe do escopo da proibição. A resolução atinge apenas eventos promovidos pelos conselhos e tribunais de Justiça e escolas oficiais da magistratura.

Relembrar o desfecho desse imbróglio é interessante no momento em que integrantes da cúpula do Poder Judiciário - desta vez os ministros do STF - se debruçam novamente sobre o tema da influência do poder econômico na democracia brasileira. É preciso ver se haverá dois pesos e duas medidas. Ações coletivas de juízes - algumas sob a rubrica de "aperfeiçoamento profissional" que o próprio presidente do STF e do CNJ, Joaquim Barbosa, disse duvidar, e outras de caráter meramente recreativo, sem ligação ao exercício da função pública - podem ser bancadas por empresas privadas. Mas campanhas eleitorais e caras - um fato incontornável nas democracias de massa - não podem ser financiadas por estas mesmas companhias. Será uma contradição, se as duas situações coexistirem.

O financiamento privado de campanha, obviamente, é uma ponte para a troca de favores e uma fonte de corrupção, no Brasil e em qualquer país do mundo. Empresas, em regra, não têm ideologia, sentimento cívico ou compromisso com o fortalecimento do sistema democrático. Têm interesses comerciais, econômicos, e não generosidade, quando doam para partidos e candidatos - ou patrocinam juízes. Esperam um retorno do investimento.

Não é à toa que entre as maiores doadoras de campanha figuram sempre grandes companhias que buscam manter ou conquistar contratos com governos ou cujos negócios podem ser diretamente afetados por mudanças na legislação. A intenção pode ser até defensiva, para que não sofra uma represália pelo futuro governante. E, por isso, são frequentes doações a mais de um concorrente. Ao abordar esse aspecto, o ministro Luiz Fux, relator do processo no STF, chegou a criticar, ontem: "Da lista das dez empresas que mais contribuíram para as eleições de 2010, a metade realizou para os dois principais candidatos. Quer dizer, foi uma ideologia bifronte." Imaginar que uma empresa possa ter ideologia só reflete como os conceitos em torno do assunto precisam ser mais bem definidos.

Comparações internacionais também são bem-vindas, embora não impliquem imobilismo, ou seja, que nada precisa ser mudado. Entre as grandes democracias, apenas a França adota um modelo exclusivamente público de campanha. A maior parte da política pelo mundo é movida a dinheiro privado e aí, sim, pode-se distinguir os limites, por exemplo, entre o que deve vir de pessoas jurídicas e o que deve ser oferecido por cidadãos, pessoas físicas. Reduzir a concentração de recursos doados por grandes empresas e estimular a pulverização das contribuições individuais é o ideal, embora seja difícil fugir à máxima de Oscar Ameringer (1870-1943): "Política é a arte de obter votos dos pobres e fundos de campanha dos ricos, prometendo a cada grupo defendê-lo contra o outro".

Ainda que em tom sarcástico, a visão do editor socialista embute a ideia tão cara ao pluralismo americano de que o processo decisório numa democracia resulta do confronto entre os diferentes grupos de interesse da sociedade.

É uma concepção que não escapa, porém, ao fato de que mudanças nas regras afetam o próprio resultado do jogo. Nos mesmos Estados Unidos, na virada do século 19 para o 20, um movimento de grande repercussão, chamado Era Progressiva, liderado por segmentos da classe média intelectualizada, empurrou o sistema político e econômico para novas direções. Rebaixou o papel dos partidos e levou à aprovação de leis antitruste que combatiam a concentração do mercado em grandes conglomerados.

Cem anos depois, o Brasil parece emular sua própria Era Progressiva, encabeçada por setores da sociedade civil - vide o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que empunhou a bandeira da Lei da Ficha Limpa - e facilitada pela expansão do Poder Judiciário. O ativismo judicial, com suas raízes na Constituição de 1988, transformou o Supremo no novo Poder Legislativo ou em seu tutor. Em seu voto, Fux determinou ontem que o Congresso ponha fim ao financiamento privado de campanha num prazo de dois anos. Falta entender por que o CNJ não foi tão longe ao tratar da relação entre empresários e magistrados.

Fonte: Valor Econômico

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