terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Jürgen Habermas: Crise de Democracia (os potenciais críticos na nova sociedade)

Na entrevista ao jornalista e escritor italiano Angelo Bolaffi, publicada no Brasil pela revista Encontros da Civilização Brasileira n. 8 (fev. 1979, tradução. de Luiz Mário Gazzaneo), a propósito da crise que então abalava os países de alto índice de desenvolvimento capitalista, Habermas respondeu, dentre outras, às seguintes perguntas relativas ao dado novo que ele chamava de “potenciais de protesto”:

Angelo Bolaffi: Em 1973, na sede do Goethe Institut de Roma, o senhor proferiu uma conferência intitulada Was heisst heute Krise? Passados cinco anos, volto a formular a pergunta: o que significa a crise hoje?

Habermas: Diria que nos últimos anos o mecanismo de crise continua tendo sua origem no sistema econômico, mas que o Estado do bem-estar, de qualquer modo o capitalismo orientado no sentido do Welfare State, não permite mais que a crise apareça de forma imediatamente econômica. E que, ao contrário, exatamente em épocas de recessão e em tempos de grande desemprego, a tentativa de integração cultural e social é o verdadeiro âmbito em que podem se manifestar fenômenos críticos.

Os anos recentes confirmaram mais ainda a minha convicção de que não é possível uma conversão das tendências de crise econômica em reação política nem mesmo da parte dos setores organizados dos trabalhadores que agem racionalmente e de acordo com o objetivo de alcançar esse fim, ou dos sindicatos, ou mesmo, entre nós na Alemanha, do partido Socialdemocrata. Ao contrário, creio que estas tendências críticas impõem-se de modo muito mediato e de maneira tal a sobrecarregar os mecanismos da integração social e cultural. Isto significa que hoje é preciso um “dispêndio ideológico” maior que em épocas de desenvolvimento capitalista com baixo índice de desemprego.

Este dispêndio ideológico orienta-se em duas direções: de um lado é incrivelmente sublinhada a ética do trabalho, isto é, presencia-se a reabilitação de comportamentos concorrenciais e a corrida nas prestações e a exaltação de virtudes que são simplesmente ligadas a uma alta mobilidade do mercado de trabalho. Isto significa que é preciso ensinar as pessoas a aceitar trabalhos que em outras condições não fariam por sua vontade ou para os quais não dispõem da necessária preparação. Volta-se assim a acentuar a ética da prestação e as virtudes fundamentais, e esta orientação penetra profundamente desde os primeiros anos de escola, até se tornar dominante no sistema educacional.

A outra direção que hoje exige um “dispêndio ideológico” é a que se volta para uma vitalização de virtudes e valores tradicionais, em primeiro lugar do elemento privado em-ou a-político, que tem o seu reflexo literário num novo subjetivismo, num renascimento certamente agradável da lírica e do romance no lugar de obras crítico-analíticas da época histórica, especializadas, sociológicas e politológicas. É um modo de reagir retoricamente contra a burocratização e os efeitos negativos do crescimento capitalista. Penso ser necessário levar a sério aquela parte da propaganda de direita que atinge necessidades verdadeiras e oferece uma interpretação conservadora para problemas reais. 

No caso da crítica do burocratismso como também na reavaliação de formas de vida tradicionais, e nas reações espontâneas não só à industria atômica, e inclusive no das reações às reformas escolásticas introduzidas por meios administrativos, manifesta-se um problema de fundo que tanto em Marx como também em Max Weber desenvolveu um papel destacado. Isto é, que em decorrência do desenvolvimento capitalista e de um processo de acumulação obviamente não orientado politicamente, pouco a pouco as formas limitadas da racionalidade econômica e também aquelas da racionalidade administrativa funcional àquele sistema, penetram em esferas de vida cada vez mais amplas, e ao mesmo tempo reestruturam-nas embora elas, de per si, deveriam voltar-se na direção de formas completamente diversas de racionalidade, isto é, formas prático-morais, processos de formação democrático-participadoras da vontade. 

Haveria assim muita necessidade de formas de relação nas quais se pudesse exprimir mais subjetividade, mais sentimentos: isto é, onde comportamentos emocionais fossem tidos muito mais em conta. Concluindo, pode-se dizer que o maior “dispêndio ideológico” do qual falei visa a dar uma interpretação conservadora de problemas que na verdade são, ao contrário, efeitos secundários disfuncionais de um crescimento capitalista politicamente não controlado. (...)

Angelo Bolaffi: Mas se é verdade que estes conflitos não reproduzem imediatamente a imagem clássica marxista do conflito de classe, eles derivam então e sempre de causas estruturais ligadas ao desenvolvimento capitalista. Disso deriva que acaba por se ampliar a missão política de reconexão na prática e na consciência dos nexos entre causas e efeitos.

Habermas: “A nós, marxistas, coloca-se o problema de interpretar as experiências que se articulam nestes movimentos de modo tal que a nossa leitura possa ser compreendida pelos que são imediatamente mobilizados: isto é, de como pode ser possível que se torne crível a nossa hipótese segundo a qual estes movimentos são fenômenos provocados pelo desenvolvimento capitalista politicamente incontrado. Porque se isto não sucede, então estes potenciais de protesto podem ser muito facilmente canalizados por um partido da ordem, conservador; por exemplo, na República Federal Alemã, os democratas-cristãos e até a CSU da Bavária utilizam a expressão “administração humana” para utilizar o potencial crítico da reação à burocracia em sentido conservador. 

Por enquanto uma tal perspectiva não é ainda iminente mas poderia acontecer, tanto mais por que estes potenciais críticos não são capazes de organização, e mais, eu não creio que sejam de natureza tal a produzir por si mesmos organizações capazes de agir de modo adequado ao objetivo que se propõem. Sozinhos, a única coisa que podem produzir é exatamente uma ruptura, isto é, de acordo com as circunstâncias, uma ruptura disfuncional ao sistema dos partidos organizados. E se se devesse chegar ao ponto em que tal tendência à ruptura se fortalecesse, será então decisivo quem souber reagir e como se reagirá. 

Em linha de principio existem duas reações possíveis: uma que leva a uma poderosa descentralização da formação da vontade política e ao envolvimento de esferas da vida que até agora foram simplesmente consideradas como não privadas e não políticas.

Ao contrário, a outra reação possível: orientar-se no sentido de um partido da ordem conservador em condições de resolver todos estes problemas no terreno administrativo e realizar simplesmente os potenciais como legitimação para colocar em causa os direitos democráticos e, em determinadas condições, até as certezas do Estado de direito.

Angelo Bolaffi: Para mim parece que se delineia também um caminho “extremista” que oscila entre autonomia e corporativismo, entre defesa da própria alteridade radical como forma e conteúdo de uma estratégia política e, ao mesmo tempo, o uso e alargamento do Welfare: entre recusa da política enquanto forma absoluta de mediação/integração e uso corporativo de determinadas conquistas, de determinados espaços políticos.

Habermas: O esfalecimento e a crise das instancias centrais, inclusive das burocracias centrais dos partidos, é um processo altamente ambivalente: ele pode evoluir em igual medida no sentido de um corporativismo neofascista ou então reforçar em tal medida tendências anarquistas de modo a provocar reações que ninguém pode desejar ou querer. Quero desta forma reafirmar que não se trata de um processo a salvo de perigos, a ser sustentado cegamente. Por ora vejo apenas que existe um problema em relação ao que os partidos de esquerda devem reagir razoavelmente. Não é simples dizer como eles devem reagir. 

De um lado deveriam por em prática uma ação de “esclarecimento” de modo a que os potenciais não se degradem num sentido corporativo. Em segundo lugar deveriam, na medida em que isto se torna possível pela concorrência dos outros partidos e nos limites de um aparelho estatal sempre centralizador, descentralizar e tornar mais flexíveis as próprias formas organizativas de maneira a que elas estejam verdadeiramente em condições de poder absorver e se concentrar sobre os potenciais críticos autônomos. 

Quanto mais depressa isto ocorrer tanto mais será possível evitar que os potenciais críticos, deixados a si mesmos, se tornem destrutivos. É só uma hipótese a minha, visto que não possuo nenhuma receita pronta e acabada. Penso, se posso falar de coisas que conheço só de longe, que também o PCI pode se encontrar em uma situação crítica na qual pode se tornar o equivalente funcional de um partido autoritário. Tais constelações historico-politicas efetivamente adquirem forma inesperada e rapidamente. 

As chances de isto ocorrer serão menores na medida em que o PCI tiver condições de descentralizar na sua estrutura íntima a sua organização, embora seja absolutamente claro que isto limita num primeiro momento sua liberdade de movimento. Sei muito bem que toda burocracia tem também os seus efeitos racionais. 

Não existem portanto soluções fáceis, só posso esperar que o PCI seja capaz de dar um exemplo positivo de como reagir a estes potenciais. E não falamos ainda do terrorismo, que torna todas estas questões infelizmente mais difíceis.

[A entrevista foi publicada originariamente em Rinascita, 28 jul./4 ago. 1978].

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