domingo, 26 de janeiro de 2014

Tereza Cruvinel: Camiseta amarela

Os jovens, especialmente os que negam a política, precisam conhecer melhor a história da democracia de que desfrutam

Quase todos que hoje têm 30 anos ou menos ouviram falar da campanha das Diretas. Mas, como não viveram a ditadura e seus horrores, a supressão do voto para presidente e outros direitos, a troca dos generais combinada entre eles mesmos, por melhor informados que sejam, não podem avaliar o que foi aquela explosão. A comparação com as manifestações do ano passado é quase herética. Protestar na democracia é fácil e quase lúdico. Mas vestir uma camiseta amarela sabendo que a cavalaria do general Newton Cruz pode atacar não é fazer um rolezinho. Sabendo que a prisão podia levar ao enquadramento na terrível Lei de Segurança Nacional, embora a ditadura já fosse, então, um leão com alguns dentes a menos.

Muito foi dito e escrito, nos últimos dias, sobre a unidade política da oposição na campanha que reuniu nos palanques figuras díspares, como Ulysses, o líder maior, Lula, Brizola, Montoro, Tancredo, Fernando Henrique, Severo Gomes, Richa, Simon e outros tantos, do centro ou da esquerda. De Teotônio, o menestrel. A coordenação interpartidária da campanha tinha duas figuras mais "executivas": o publicitário Mauro Montorin, indicado por Montoro, pelo PMDB, e José Dirceu, do PT, indicado por Lula. Na democracia que ajudou a construir, Dirceu acabou preso na Papuda. Os dois organizaram juntos a infraestrutura e a liturgia política dos grandes comícios. Entraram também para essa história Osmar Santos, o locutor, Fafá de Belém, a diva, Cristiane Torloni, a musa.

Mas o povo, que vivia acuado, comparecendo aos simulacros eleitorais, foi o grande protagonista. O ascenso das massas em 1968, puxado pelo movimento estudantil, terminara com o AI-5, o recrudescimento da ditadura, da tortura, das cassações e perseguições. Sem caminho, a juventude mais aflita, inclusive a hoje presidente Dilma, jogou a vida na luta armada, apesar da desproporção de forças no confronto. A guerra foi suja, muitos morreram, os mais intrépidos, como Marighela e Lamarca, foram executados a sangue frio. Os do Araguaia foram dizimados, restando hoje dois ou três vivos. Um deles, José Genoino, em prisão domiciliar. A brutalidade do "combate ao terrorismo" calou fundo, e a população se recolheu. Os pobres amargaram o arrocho salarial, e a classe média desfrutou do "milagre econômico". O despertar começou em 1974, quando o PMDB elegeu a maioria dos senadores. Em 1982, a maioria dos governadores. A explosão veio em 1984, a partir do primeiro comício das diretas, que ontem completou 30 anos.

Falou-se pouco de quem, quase inadvertidamente, como quem solta uma borboleta, propiciou tudo isso. Dante de Oliveira chegara à Câmara em 1983 e o que primeiro chamou a atenção no jovem deputado por Mato Grosso foram os ternos brancos, eventualmente acompanhados pelo chapéu na mesma cor. E também o porte e a gentileza. Estávamos, uma tarde, num sofá do Salão Verde, um grupo de repórteres, e ele se aproximou quase constrangido: "Vocês já ouviram falar da minha emenda propondo eleições diretas para presidente? Pois o doutor Ulysses finalmente concordou em apresentá-la à executiva e propor uma campanha pela aprovação. Vocês podiam provocá-lo sobre o assunto". Iríamos todos fazer isso, mas com grande ceticismo. Como aprová-la se o regime tinha maioria no Congresso? O resto é história. Veio a campanha e, para os jornalistas, uma cobertura inesquecível. Dante morreu muito jovem, depois ter governado seu estado.

Em abril, lembraremos o dia em que as multidões foram derrotas no plenário da Câmara. Lembro-me nitidamente do momento em que o painel se abriu e mostrou o resultado: apenas 298 a favor. Faltaram 22 votos. Da lividez de Ulysses, do espanto da oposição, do constrangimento dos que ganharam mas não celebraram, das lágrimas incontidas. Segui o grupo que, com Cristina Tavares e Maria da Conceição amparando-o, conduziu Ulysses ao gabinete do subsolo, onde ainda funciona a presidência do PMDB. Vergado pela derrota, o Senhor Diretas, o timoneiro, titubeava sobre as pernas trôpegas.

A evocação das diretas é pedagógica, por isso mais essas reminiscências. Os jovens, especialmente os que negam a política, precisam conhecer melhor a história da democracia de que desfrutam. Deviam ler o livro de Ricardo Kotscho, Explode um novo Brasil, relato vivo da campanha. No prefácio, Ulysses escreveu, louvando o autor: "Poesia é encontrar uma árvore esquecida à beira de uma estrada e glorificá-la". Chico Buarque nos legou a canção que diz: "Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela". Muita gente guarda sua camiseta amarela. A minha dorme num baú de souvenirs políticos, resistindo a traças e trapaças.

Fonte: Correio Braziliense

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