terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Democracia líquida

Para sociólogo italiano, a luta contra a barbárie depende de um ambiente em que a arte e a cultura sirvam de ‘líquido amniótico’ para ideais de liberdade, tolerância e solidariedade

João Marcos Coelho

Dois peixes jovens encontram-se casualmente com um peixe mais velho que nada na direção contrária. Este cumprimenta-os com a cabeça e lhes diz: "Bom dia, rapazes, como está a água?". Os dois peixes jovens nadam mais um pouco; depois um olha para o outro e pergunta: "Que diabos é água?". Nuccio Ordine Diamante, 55 anos, professor de literatura italiana da Universidade da Calábria e colaborador do jornal Corriere della Sera, costuma abrir suas aulas a cada ano contando essa historinha do escritor norte-americano David Foster Wallace. A intenção é ilustrar o papel e a função da cultura. Com os alunos meio "boiando", Ordine explica a parábola: "Como acontece com os dois peixes jovens, não nos damos conta de que é na água que vivemos cada minuto de nossa existência. Não temos consciência de que a literatura e os saberes humanísticos, a cultura e o ensino constituem o líquido amniótico ideal no qual as ideias de democracia, liberdade, justiça, laicidade, igualdade, direito à crítica, tolerância e solidariedade podem experimentar um vigoroso desenvolvimento".

Mas e se a água está irremediavelmente suja? Uma água contaminada pela corrupção, por uma sociedade em busca incessante do lucro? Uma água que transforma estudantes em "clientes", induzidos por pais a carreiras que só contemplam maior chance de enriquecer? Uma água virulenta, que espalha violência gratuita? Uma água que sepulta a arte e a cultura de invenção, em troca da "beleza fácil" e dos critérios comerciais na vida artística e cultural, na expressão de Ordine?

Contra essa água emporcalhada, o professor oferece um livrinho-bomba - um manifesto virulento e cheio de indignação intelectual a favor da arte e da cultura desinteressada a cargo de Platão, Aristóteles, Ovídio, Dante, Montaigne, Borges, Shakespeare, Boccaccio, Leopardi e Calvino. Um timaço convocado por Ordine em sua frente de combate. Título? A Utilidade do Inútil. Menos de 200 páginas em formato de livro de bolso editadas pela Bompiani de Milão. No final de 2013, a Acantilado de Barcelona lançou a edição espanhola. O professor Luiz Carlos Bombassaro, da UFRGS, universidade que recebeu Ordine em 2012, já traduziu o livro, a ser lançado no Brasil ainda em 2014. Na Itália, foram nove edições e 46 mil exemplares vendidos em quatro meses; na Espanha, cinco edições e 17 mil exemplares em três meses; e na França, 10 mil em quatro edições. Além do Brasil, o livro deve sair este ano na Grécia, Alemanha, Romênia e Coreia do Sul; em 2015, na Bulgária e na China. A melhor frase na imprensa europeia sobre o livro já está eleita: é de Jordí Llovet em El Pais: "Uma porrada em toda a classe política".

A mensagem de Ordine é bastante direta: não é verdade, nem em tempos de crise como se vive na Europa, que é útil apenas o que produz cifras. Num jogo de palavras, ele brinca com a utilidade do inútil (conhecimento) e a inutilidade do útil (lucro). Especialista em Giordano Bruno e no Renascimento e com um conhecimento enciclopédico fluindo numa escrita saborosa e clara, Ordine constrói um caleidoscópio de defesa da arte e da cultura - segmentos massacrados e hostilizados especialmente quando praticam a criação e a pesquisa baseadas tão somente no saudável gosto de perseguir o conhecimento.

"No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que uma poesia, uma chave-inglesa mais que um quadro, porque é fácil entender a eficiência de uma ferramenta, mas vem se tornando cada vez mais difícil entender para que servem a música, a literatura ou a arte", denuncia Ordine. Existem saberes que são fins em si mesmos e que - por sua natureza gratuita e desinteressada, alheia de qualquer vínculo prático e comercial - podem exercer papel fundamental no cultivo do espírito e desenvolvimento civil e cultural.

Mesmo se em alguns momentos da história o saber não soube ou pôde eliminar de vez a barbárie, ele diz não haver nenhuma outra escolha. "Devemos continuar a crer que a cultura e uma educação livre são os únicos meios para tornar a humanidade mais humana." Pequenas revoluções individuais, essa é a receita de Nuccio Ordine para mudar o estado das coisas. Abaixo, sua entrevista concedida ao Aliás.

No Brasil temos muitos ‘berlusconis’ e a classe política sofre o mesmo descrédito que na Itália. As verbas do governo chegam ralas a sua destinação porque são saqueadas no trajeto pela burocracia e pelos políticos. Que atitudes podem ser tomadas para começarmos a mudar esse estado de coisas? Que nos ensinam os clássicos em termos de resistência contra tudo isso?

O problema da corrupção acompanha todas as épocas. Mas hoje parece que ganhou mais capilaridade. A ditadura do lucro e do utilitarismo infectou todos os aspectos da nossa vida, chegando a contaminar esferas nas quais o dinheiro não deveria ter peso, como a educação. Transformar escolas e universidades em empresas que devem produzir unicamente diplomados para o mundo do trabalho é destruir o valor universal do ensino. Os estudantes adquirem créditos e pagam débitos com a esperança de conquistar uma profissão que possa dar a eles o máximo de riqueza. A escola e a universidade, ao contrário, devem formar os heréticos capazes de rejeitar o lugar-comum, de repelir a ideologia dominante de que a dignidade pode ser medida com base no dinheiro que possuímos ou com base no poder que possamos gerenciar. A felicidade, como nos recorda Montaigne, não consiste em possuir, mas em saber viver. No meu livro, quis chamar a atenção sobre os saberes que hoje são considerados inúteis porque não produzem lucro. Sem a literatura, a filosofia, a música e a arte, nós construiremos uma humanidade desumana, violenta, formada por indivíduos capazes de pensar exclusivamente em interesses egoístas.

Como devolver aos professores o sentido de missão que deveria ser a razão de seu trabalho?

Os professores viraram burocratas em busca de recursos para sobreviver. Perseguidos pela necessidade de encontrar recursos econômicos e governados por uma métrica burocrática que determina a pauta das reuniões de departamento, dos cursos de graduação e dos mais diversos conselhos (de administração, de pós-graduação, de cursos de especialização), vivem correndo de uma instituição a outra esquecendo que a tarefa mais importante de um docente consiste em estudar, preparar as aulas e acompanhar os alunos. Ensinar não é uma profissão, mas uma vocação que não prescinde de compromisso civil. Também na área da ciência financia-se cada vez menos a pesquisa de base e cada vez mais se pede que universidades e laboratórios encontrem financiamentos privados. Somente a liberdade da pesquisa (da pesquisa considerada "inútil") deu vida às grandes revoluções da humanidade. Sem os estudos teóricos de Maxwell e Hertz, Marconi nunca teria inventado o rádio.


As artes e a cultura são sempre as primeiras a sofrer cortes nas políticas públicas em situação de crise. Mas hoje a situação é pior: até os profissionais da arte e da cultura estão contaminados com a busca obsessiva pelo lucro. Mede-se e atribui-se valor à arte pelo volume de público que consegue atrair, mas quantidade nunca quis dizer qualidade. Isso sempre aconteceu historicamente?


Com o agravamento da crise econômica, os cortes dos governos atingem inexoravelmente mais os saberes considerados inúteis e as instituições que não produzem lucro: escolas e universidades, museus e arquivos históricos, escavações arqueológicas e bibliotecas, teatro e música. Muitas vezes, a sobrevivência desses saberes está subordinada à lógica da "quantidade", como se o sucesso imediato e o dinheiro derivado desse sucesso fossem os únicos parâmetros de avaliação. Mas, frequentemente, como lembra Tocqueville, o sucesso é determinado pela "beleza fácil" que não exige muito esforço nem excessiva perda de tempo. E dedicar tempo e realizar atividades que não produzem dinheiro parece ser um luxo que não podemos nos permitir. Se Tocqueville lembra que descuidar da instrução, da beleza e da cultura significa jogar a humanidade no abismo da ignorância e da barbárie, Víctor Hugo, num atualíssimo discurso proferido na Assembleia Constituinte francesa em 1848, demonstra que mesmo em tempos de crise é preciso dobrar os investimentos para a educação das novas gerações e para a promoção da cultura em geral. Hugo sabia bem que abrir uma escola significava fechar uma prisão.

Como transformar a indignação em uma luta coerente contra a ditadura do consumo?

Meu livro é uma reflexão sobre a utilidade do inútil, mas é também uma análise crítica da inutilidade do útil. Quantas vezes são vendidos produtos e objetos como sendo realmente indispensáveis? As invenções mais revolucionárias da técnica (basta pensar no iPhone ou na internet) também podem se transformar numa forma de escravidão. Os estudantes que não conseguem desligar o celular nas aulas (ou as pessoas que não o desligam num concerto, no cinema, no teatro, numa conferência) comportam-se como drogados. O dispositivo tecnológico é como um fármaco: pode curar e pode matar. Tudo depende da dose. Mas há mais. Numa sociedade em que o aparecer é mais importante que o ser, parece normal que o automóvel de luxo ou o relógio de grife se tornem expressão do nosso modo de ser. Basta ler O Mercador de Veneza, de Shakespeare, para compreender como a exterioridade induz ao erro. No reino de Belmonte, a bela Porzia se entregará como esposa ao que abre o cofre de chumbo, e não ao que abre o de ouro ou prata. Trata-se de um topos que, desde O Banquete de Platão, atravessará todo o Renascimento: as aparências enganam.

A palavra utopia tem sido malvista nos últimos tempos. Mas não é justamente o anseio pelas utopias que nos faz viver de modo mais intenso e impulsionou o senhor a escrever esse livro?

Reduzir o valor da vida ao dinheiro mata toda possibilidade de idealizar um mundo melhor. Somente o saber pode fazer frente ao domínio do dinheiro, pelo menos por três razões. A primeira: com o dinheiro pode-se comprar tudo (dos juízes aos parlamentares, do poder ao sucesso), menos o conhecimento. Sócrates lembra a Agatão que o saber não pode ser transferido mecanicamente de uma pessoa a outra. O conhecimento não se adquire, mas se conquista com grande empenho interior. A segunda razão diz respeito à total reversão da lógica do mercado. Em qualquer troca econômica há sempre uma perda e um ganho. Se compro um relógio, por exemplo, "perco" o dinheiro e fico com o relógio; e quem me vende o relógio "perde" o relógio e recebe o dinheiro. Mas, no âmbito do conhecimento, um professor pode ensinar um teorema sem perdê-lo. No círculo virtuoso do ensinar, enriquece quem recebe (o estudante), enriquece quem dá (quantas vezes o professor aprende com seus estudantes?). Trata-se de um pequeno milagre. Um milagre - e essa é a terceira razão - que o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw sintetiza num exemplo: se dois indivíduos têm uma maçã cada um e fazem uma troca, ao voltar para casa cada um deles terá uma maçã. Mas, se esses indivíduos possuem cada um uma ideia e a trocam, ao voltarem para casa cada um deles terá duas ideias. Mesmo se em alguns momentos da história o saber não soube ou pôde eliminar por completo a barbárie, não temos outra escolha. Devemos continuar a crer que a cultura e uma educação livre são os únicos meios para tornar a humanidade mais humana.

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

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