sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Maria Cristina Fernandes: No tempo em que Copa era coisa de comunista

Getúlio fez 40 discursos sem mencionar a bola

Jovens militantes tiveram os fios de seus alto-falantes desligados pela polícia na Central do Brasil ao iniciarem a campanha de recolhimento de fundos para seu candidato. Jovens esquerdistas em passeata contra o que consideravam entreguismo da política externa foram presos em frente ao Itamaraty. O caos urbano ditava a manchete de domingo do principal jornal do Rio: "Transporte, aflição eterna do carioca".

Em mensagem enviada ao Congresso Nacional, o presidente pedia instrumentos para garantir a ordem interna: "Urge aparelhar o Estado para defender-se internamente contra os inimigos da democracia que vêm atentando, reiterada e organizadamente, contra as nossas instituições nascentes".

A julgar pelas edições do 'Correio da Manhã', este era o clima no Rio que antecedia a Copa do Mundo de 1950.

Os jovens reprimidos pela polícia faziam campanha pelo brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN. A passeata contra a comitiva americana era liderada por simpatizantes do Partido Comunista. E o presidente em busca de mais instrumentos de repressão era o general Eurico Gaspar Dutra, o primeiro dos eleitos naquele suspiro de democracia que foi de 1946 até o golpe de 1964.

Não faltavam os precursores dos black blocs. As obras de adequação do estádio do Pacaembu ainda não haviam se iniciado quando eclodiu uma manifestação em São Paulo contra o aumento de 150% na tarifa de bondes. A recém-criada Companhia Municipal de Transporte Coletivo (CMTC), passou a ser chamada de 'Custa Mais Trinta Centavos'. Houve pichações nos muros, depredações no comércio e bondes queimados. Como lhes faltassem máscaras, escaparam de passar à história como terroristas.

Era outro o Brasil. A começar pelo futebol, que ainda disputava com o turfe a centrimetragem dos jornais. Desde 1946 o Brasil dera o sim à Fifa, que depois de uma Europa destroçada pela guerra, se desesperava em busca de uma sede para a Copa. As obras tardaram e as seis cidades-sede apenas se definiram três meses antes do evento.

No recém-lançado "A História do Brasil em 50 Frases" (Leya, 2014), o jornalista Jaime Klintowitz pinça uma de Pelé - "Maracanã é Maracanã. Uma vitória ali vale por duas em qualquer lugar do mundo" - para contar a situação do estádio no dia da inauguração: "Havia muita poeira e áreas sem acabamento. Os torcedores encontraram andaimes nas arquibancadas, entulho e muito barro por toda a parte. A tinta azul das cadeiras manchava a roupa dos espectadores, em um tempo em que muita gente comparecia aos jogos de terno e gravata".

Nos jornais fazia-se muchocho dos gastos, ainda que tenham sido 70 vezes menores que os de hoje. O país era 21 vezes mais pobre e tinha uma gente que vivia até os 43 anos (ante 74 hoje), sendo metade analfabeta, fatia quase sete vezes maior que a de agora.

A Copa ainda não era um megaevento, vitrine mundial de feitos e malfeitos de potências e aspirantes. Apenas 13 países participaram. Havia pouco envolvimento federal. Foi tema local ainda que politizado. Prefeitos e Câmaras de Vereadores enfrentaram-se. O Maracanã foi uma batalha travada entre Carlos Lacerda, então vereador da UDN, e o prefeito nomeado do Distrito Federal, general Ângelo Mendes de Morais, a quem acusaria de ser o mentor de um dos atentados que sofreria durante a pendenga.

Ao lado do prefeito perfilaram-se o compositor de Aquarela do Brasil, Ary Barroso, também vereador da UDN e segundo mais votado da Câmara Municipal, depois de Lacerda, e os 18 da bancada do Partido Comunista, liderados por Aparício Torelly, o 'Barão de Itararé'.

Em artigo na imprensa sindical, João Guilherme Vargas Neto disse que aquela foi a primeira batalha da guerra fria no Brasil. O envolvimento dos vereadores comunistas com o Maracanã foi uma de suas últimas batalhas públicas antes da cassação do partido, feito resultante da mensagem presidencial em que Dutra pedira poderes antibaderna.

Numa época sem televisão, jornais e rádios ocuparam-se da Copa. Em sua campanha pela construção do Maracanã, o 'Jornal dos Sports' encomendou pesquisa ao Ibope. A bancada pró-Copa no jornal era liderada por Mário Filho, o cronista esportivo irmão de Nelson Rodrigues que, mais tarde, daria nome ao estádio.

O Ibope colheu 79,2% de aprovação à construção do Maracanã. Apenas 6,9% concordavam com sua localização em Jacarepaguá, para onde Lacerda, depois de ter perdido a batalha, queria levá-lo. Num universo de mil entrevistados, 53,6% se dispunham a arcar com algum ônus tributário para ajudar no custeio do estádio, uma empreitada do poder municipal.

Aquele Brasil da primeira Copa também estava em campanha presidencial. O brigadeiro Eduardo Gomes foi o primeiro a se lançar pela UDN em aliança com os integralistas de Plínio Salgado. O PSD ofereceria o ex-prefeito de Belo Horizonte, Cristiano Machado, cujo abandono por seus correligionários daria origem ao termo 'cristianização'.

Os governistas abandonariam Machado por Getúlio Vargas, que se lançaria pelo PTB em discurso de 16 de junho, véspera do jogo que inaugurou o Maracanã, oito dias antes do início da Copa do Mundo.

Dali até o dia da eleição, em 3 de outubro, Getúlio faria a defesa de seu legado no Estado Novo, atacaria a política econômica inflacionária de seu sucessor e prometeria servir aos trabalhadores colocando o país a salvo dos 'totalitários de direita' e dos 'revolucionários de esquerda'. Ao longo de seus três meses e meio de campanha, Getúlio viajou por 21 Estados. De Erechim, no seu Rio Grande do Sul natal, até Marabá, passando por Mossoró, Corumbá e Pirapora. Defendeu da produção da cera de carnaúba ao panamericanismo. A leitura de seus 40 discursos reunidos pela José Olympio ("A Campanha Presidencial", 1951), porém, não oferece uma única referência à Copa do Mundo. Getúlio foi eleito com 48,7% dos votos, um pouco menos que a soma de seus dois principais adversários.

Fonte: Valor Econômico

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