segunda-feira, 30 de junho de 2014

Nelson Paes Leme: Morte e vida das Repúblicas

• O país não tem mais a mínima clareza de suas estratégias e o destino é uma obscura incógnita

- O Globo

Só mesmo quem passou por experiências muito próximas da morte pode avaliar o que venha a ser essa fronteira tão tênue e tão frágil entre o ser e o não ser mais. Shakespeare dela se ocupou na maioria de suas peças. Quase um obcecado pelo tema. Os gregos a transformaram em duas criaturas míticas quase irmãs siamesas: Eros, o deus do amor e da vida, e Tanatos, o deus alado que deixa certa bruma prateada depois da sua obra letal concluída. Sem falar nas copiosas tragédias. O magistral Jorge Luis Borges em seu conto “O imortal”, um dos mais expressivos textos de realismo fantástico jamais escritos, descreve o périplo intertemporal e interespacial insone e aflitivo do personagem principal que deseja ardentemente morrer e não consegue, até encontrar uma tribo de bugres também imortais mas que dispunha do bendito antídoto procurado incessante e desesperadamente pelo "Imortal": a água de uma benta chuva sazonal que representava, afinal, o fim da vida doentiamente eternizada desses trogloditas. Isto porque o fim é dialeticamente também o princípio. A imagem do hexagrama do I Ching para a reconstrução ou “trabalho sobre o que se deteriorou" é um caldeirão com vermes no fundo.

A ordem social, a política e o Estado organizado repetem essa dualidade do indivíduo. Também as repúblicas e os regimes políticos falecem, como empresas podem falir e pessoas simplesmente desaparecer, independentemente do momento escolhido e da quantidade de pranto derramado.

As coletividades repetem essa dialética individual até porque se constituem de indivíduos, obviamente, sujeitos a esse mesmo processo eterno. Mesmo espécies inteiras se extinguem a despeito da continuidade das demais. Estrelas apagam seus fogos supostamente eternos e aparentemente perenes no escuro nanquim da eternidade e do infinito.

O que ocorre hoje com essa nossa República em cínicos estertores e nítidos frangalhos morais é sintomático dessa falência múltipla de órgãos que ora vivenciamos, sempre na expectativa otimista de que não seja o último suspiro dessa purulenta senhora, esse mau hálito exalado pelas instituições no Brasil, sem exceção. O país não tem mais a mínima clareza de suas estratégias e o destino é uma obscura incógnita. Seja no planejamento econômico, com um Estado gigantesco e inadministrável em sua obesidade mórbida, loteado em múltiplas fatias das conveniências politiqueiras dessas espúrias alianças por tempo na TV; seja na representação partidária totalmente distorcida e dissociada da realidade das ruas e dos clamores diários da sociedade por melhores condições de saúde, educação, transporte e segurança; seja na falta de lideranças com propostas objetivas e realmente saneadoras desse verdadeiro caos em que esses últimos 12 anos de gestão petista nos enfiou a todos goela abaixo. A República faleceu e ninguém se dá conta. Nem governo nem oposição refletem isso em seus discursos delirantemente dissociados da chamada realidade plausível de Fernando Pessoa.

O poder corrompe, já disseram Lao Tzu e Maquiavel, mas também aliena. Quanto mais tempo no poder, mais corruptos, impunes mas, sobretudo, mais alienados seus ocupantes. Como obter lisura e isonomia em eleições adredemente corrompidas, onde o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, nomeado por uma candidata, exatamente a ocupante do Executivo, foi até ontem militante e advogado do partido político desta candidata? Como obter lisura e isonomia numa eleição onde a candidata do governo dispõe do dobro de tempo de propaganda eleitoral de todos os candidatos da oposição? Como acreditar em um governo cuja cúpula dirigente está atrás das grades, com um diretor da maior empresa estatal também preso e outro do maior banco estatal, condenado e foragido na Itália? Desde os brioches de Maria Antonieta na França da Bastilha decaída, ao Baile da Ilha Fiscal que pôs fim ao Império no Brasil que os decadentes alienados se sucedem. O poder petista desses tempos não estaria imune a essa fatalidade histórica. Nunca se viu tanta corrupção, tanto descaso e escárnio com a coisa e com a opinião públicas e tanta alienação para o que está por vir.

Preveem-se tempos sombrios e confusos. Quem viver, verá. Ninguém se dispõe a enterrar essa fétida senhora: a república lulopetista. Não há coveiro que resista a tanta putrefação. E o mais incrível de tudo: a única proposta de reforma política do Estado vem pelas mãos exatamente do próprio PT.

Nelson Paes Leme é cientista político

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