quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Alfredo Sirkis: O 122 e seu labirinto...

- O Estado de S. Paulo

Seguramente, muitos dos que criticam o fato de o programa de Marina Silva afinal não ter encampado o Projeto de Lei (PL) 122, "contra a homofobia" - incluída a presidenta Dilma Rousseff, sua defensora tardia -, não devem ter lido direito essa peça legislativa bisonha e tecnicamente mal-ajambrada. Legislação penal não tem por que constar do programa de governo. Cabe ao Legislativo. De qualquer maneira, vale a pena conhecer algumas disposições do substitutivo ora em tramitação no Congresso Nacional.

O PL 122 pune com pena de prisão fechada delitos sem violência: palavras e atitudes de discriminação, algumas de caracterização bastante complexa na vida real. Por exemplo: "Art. 2.º (...) II - ofender a honra das coletividades previstas no caput" (comportamentais e religiosas). Isto é, criminaliza uma invectiva genérica, não personalizada, já que extensiva a "coletividades", punida com penas de prisão de dois a sete anos. Cria-se um delito de opinião/expressão genérico.

Mais: "Art. 3.º (...) I - impedir ou obstar o acesso de pessoa, devidamente habilitada, a cargo ou emprego público, ou obstar sua promoção funcional". Imaginemos na vida real: nomeação para um cargo comissionado de livre provimento. Um gestor público pretere um postulante homossexual por considerar outra pessoa mais competente ou apropriada para aquele DAS. Inconformado, o não nomeado o acusa na Justiça Criminal de "obstar seu acesso" ao cobiçado cargo por ser gay. O gestor em questão fica exposto à pena de prisão.

Provavelmente não vai terminar recluso, mas sua vida nos anos seguintes virará um inferno, uma vez que o preterido, implacável, terá contratado o dr. Vivaldino Rábula - advogado cheio de manhas e truques e muito bem relacionado que sabe batalhar uma litigância dessas como ninguém.

Também encontramos no texto uma previsão de dois a sete anos de prisão para transgressões do tipo "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem" (artigo 2.º, I). Como se tipifica "ofender a saúde" ou a "integridade corporal"? Nosso ordenamento legal define a agressão ou lesão corporal de forma objetiva, identificável num exame de corpo delito, ou o atentado ao pudor. Como caracterizar precisamente uma "ofensa à saúde"? Isso se presta a uma litigância abusiva, mas provavelmente inócua.

Adiante: "Art. 4.º - Aumenta-se a pena dos crimes previstos nesta lei de um sexto a metade se a ofensa foi também motivada por raça, cor, etnia, procedência nacional e religião (...)." Vamos imaginar uma partida Corinthians x Boca Juniors. A Fiel, com sua habitual delicadeza, resolve marcar o craque adversário: "Maricón, maricón!". Alguns milhares de torcedores acabam de se expor a uma pena de dois a sete anos de cadeia... Logo, a galera passa a delinquir "agravadamente", pois contra a "procedência nacional" do jogador adversário: argentino maricón! A pena se vê agravada de um sexto. Na sequência, a torcida reincide atribuindo certa orientação sexual ao árbitro do jogo...

Caso aplicadas a sério, essas disposições legais engendrariam considerável incremento da população carcerária brasileira, já que, inacreditavelmente, a prisão fechada é a única punição prevista para esses delitos contemplados. O artigo 5.º explicita: "Em nenhuma hipótese as penas previstas nesta lei serão substituídas por prestações pecuniárias". Isso num momento em que a sociedade discute cada vez mais penas alternativas para crimes sem violência e os presídios se encontram superlotados.

Concordo em ver agravadas penas previstas no Código Penal por homicídio ou agressão praticados contra homossexuais e motivados pelo ódio homofóbico. Deve ser coibida com severidade qualquer incitação à violência.

Mas apenas casos envolvendo a efetiva prática da violência devem ser punidos com penas de encarceramento.

Devem doer no bolso do autor delitos que acarretem dano moral, inequívoco e individualizado, como a vedação de ingresso de alguém em estabelecimentos, perseguição profissional, bullying ou demissão abusiva de gays, deficientes ou religiosos, de qualquer crença, por preconceito. Não cabe, no entanto, criminalizar o discurso genérico contra uma "coletividade" comportamental ou outra.

A liberdade de expressão não se pode restringir apenas ao discurso "politicamente correto". O imbecil, o energúmeno, o preconceituoso tem o direito a se exprimir - desde que não incite concretamente à violência e ao crime - e pontificar suas baboseiras, ressalvado o racismo, que difere do preconceito comportamental.

É preciso ter cautela com a radicalização do discurso "identitário", que engendra uma sociedade sectária, constituída de tribos raivosas, mutuamente excludentes, irreconciliáveis. A arma mais eficaz contra a homofobia é a promoção de uma cultura democrática de tolerância e respeito pelo outro. A opção sexual é simplesmente um modo de ser e de viver a própria vida. Sua afirmação via coerção legal das convicções religiosas de outrem, por mais atrasadas e reacionárias que sejam, é contraproducente, pois tende a produzir um círculo vicioso.

Esse círculo vicioso não exclui, no campo político-eleitoral, uma certa emulação midiática recíproca entre um tipo de ativismo vociferante e o moralismo repressivo, religioso ou da extrema direita troglodita. Uns e outros tacitamente "levantam a bola" para seus desafetos comportamentais perante os respectivos eleitorados - no momento com nítida vantagem eleitoreira para os pregadores homófobos, aclamados como heróis nos seus rebanhos ou currais.

O clima raivoso dessas guerras culturais, destilado nas redes sociais, descortina uma sociedade mais intolerante, avessa ao diálogo, histérica, incapaz de lidar democraticamente com suas diferenças.
Quem disputa a Presidência de todos os brasileiros não tem por que correr para dentro desse labirinto.

*Alfredo Sirkis é deputado federal (PSB-RJ)

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