sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O Brasil pós-eleições

• Alberto Carlos Almeida, Fátima Pacheco Jordão, José Álvaro Moisés e Renato Janine Ribeiro discutem os desafios do novo governo Dilma

O que esperar de Dilma?

Diego Viana - Valor Econômico – Eu & Fim de Semana

SÃO PAULO - A reeleição apertada de Dilma Rousseff contra seu opositor Aécio Neves foi o fechamento de um ciclo eleitoral cheio de reviravoltas e surpresas. Assumindo em meio a um quadro econômico difícil e com um Congresso mais fragmentado e mais hostil à situação, a presidente será obrigada a dialogar com a sociedade, o mercado e as forças políticas de um modo que contrastaria com seu primeiro mandato.

O Valor reuniu quatro especialistas em política brasileira para discutir os desafios que esperam o país nos próximos quatro anos e o legado deixado por um período eleitoral intenso e agressivo. A socióloga Fátima Pacheco Jordão, diretora da Fato Pesquisa; o cientista político Alberto Carlos Almeida, do Instituto Análise; o filósofo Renato Janine Ribeiro e o cientista político José Álvaro Moisés, ambos da Universidade de São Paulo, foram unânimes em apontar o descompasso entre o sistema político e as demandas da sociedade. Para eles, nem a situação nem as oposições conseguem responder aos anseios da população.

Em suas primeiras manifestações após a vitória, Dilma prometeu avançar no projeto de reforma política. Para os especialistas, a conjuntura econômica e os interesses dos partidos instalados tornam a reforma difícil. Além disso, os próximos quatro anos serão decisivos para os principais partidos, que terão de encontrar lideranças renovadas para participar da próxima eleição presidencial, em 2018.

Leia, a seguir, trechos da mesa-redonda realizada na redação do Valor, em São Paulo, que contou com participações dos jornalistas Maria Cristina Fernandes, Cristian Klein, Robinson Borges e Bruno Yutaka Saito:

Valor: Quais são os maiores desafios para o segundo mandato de Dilma Rousseff, tendo vencido com margem tão apertada?

José Álvaro Moisés: O próximo governo terá que enfrentar uma crise institucional, a dar crédito ao que a mídia tem dito sobre a delação do ex-diretor da Petrobras [Paulo Roberto Costa], que pode envolver cerca de 50 figuras importantes do sistema político. Não é uma situação muito simples para começar um novo governo. Como vai se formar a coalizão em um Congresso muito mais fragmentado, e com o PMDB, setor importante da base aliada, muito dividido? De certo modo, a divisão do PMDB reflete na prática a divisão do eleitorado. A expressão de que o país está partido ao meio é muito forte, mas a divisão foi muito além do que se podia imaginar. O PT perdeu parte da bancada: 18 deputados. Não é pouco. Não temos um roteiro de como vai ser o próximo governo. Qual vai ser a natureza da coalizão? Quais são as primeiras metas? Como vai ser feita a reforma política?

Renato Janine Ribeiro: A parte mais vocal da população, com mais acesso à mídia, mais condições de se projetar, votou majoritariamente na oposição. Vai ser difícil governar. Tenho um certo pessimismo, porque, embora considere Dilma uma pessoa de grande lisura pessoal e grande preocupação com as causas sociais, me preocupo com o pouco diálogo que ela sempre manteve. Ela vai dialogar com o empresariado, que se queixa tanto de não ter acesso à Presidência? Vai dialogar com os políticos? Vai dialogar com a sociedade?

Fátima Pacheco Jordão: Foi uma eleição muito longa. Começou em junho de 2013 e teve várias etapas. Foi sempre um desafio entender o que estava acontecendo. Os movimentos de junho [de 2013] arrebataram o Brasil, mas a sociedade só entendeu quando conseguiu articular um slogan, a ideia de "saúde padrão Fifa", que desaguou nos protestos em relação à Copa do Mundo. É uma mudança importante no olhar da sociedade. Começou o protagonismo de uma nova face da cidadania, o contribuinte. Muito lentamente, essa tendência vem vindo lá de longe, desde a crise do Orçamento, no início dos anos 1990, quando se começou a discutir para onde vai o dinheiro público. O brasileiro foi educado com um padrão de consumo em que, quando um produto não presta, ele deve ser trocado, e são produtos que têm preços e impostos. As manifestações disseram: "Queremos melhores serviços, um governo mais eficiente". Não sei se os partidos entenderam. O que sintetizou esse movimento foi a percepção de que algum tipo de mudança era desejado por 70% do eleitorado, e mesmo assim não foi nem uma eleição de mudança, nem de continuidade. Ficou no meio do caminho, e hoje provavelmente o eleitor está um pouco perplexo: "Muito bem, mudou, mas não mudou tanto". O discurso de vitória da presidente foi um discurso de mudança, apesar de ela ser continuidade. Essa ambiguidade vai ser resolvida pelas crises que vierem, pela maneira como os políticos, em particular a oposição, se posicionarem.

Moisés: Concordo que haja ambiguidade. Isso aparece nos temas que cruzaram os últimos debates e a primeira manifestação da presidente. O subtexto do discurso é: depois de uma disputa tão agressiva, coisa que não é nada boa para a democracia, como criar condições de diálogo entre as forças políticas? O contexto de crise econômica vai exigir cooperação. E ela introduziu de modo surpreendentemente contundente o tema da reforma política, que apareceu marginalmente na campanha. Embora se falasse em "nova política" na campanha de Marina Silva, embora Aécio Neves brandisse a ideia de eliminar o instituto da reeleição, não apareceu com claridade o que seria a reforma política. No discurso de Dilma, é como se essa reforma fosse a primeira grande bandeira, e mesmo assim não estava bem definida. Também concordo que a campanha começou com as manifestações do ano passado. Acho que parte das oscilações que ocorreram na campanha tem a ver com o mal-estar com o funcionamento da democracia. Um mal-estar que aparece nas pesquisas que tenho conduzido há algum tempo. Não é que as pessoas não sejam favoráveis ao regime democrático, mas na percepção do funcionamento do regime há déficits importantes. O Congresso e os partidos têm mais de 80% de desconfiança. Muito disso decorre do fator corrupção. Quando as pessoas percebem que a corrupção é sistêmica, a desconfiança cresce.

Ribeiro: Muita gente está falando em mudança, mas o que se entende por mudança é muito diferente. O Brasil hoje é um país que se sente constantemente incompleto. Alguns acham que estamos no caminho certo; outros, no caminho errado. Mas ninguém está satisfeito, por exemplo, com os serviços públicos. A pessoa pode querer mudança sob um partido que considera bem-sucedido na inclusão social. Ou pode achar que a economia não está bem, que a corrupção não foi debelada etc. Houve um racha de interpretações do mundo. Não é questão de ter os fatos e divergir na interpretação. Os fatos que são narrados, de um lado e do outro, são diferentes. Temos isso na palavra "corrupção", na palavra "esquerda". E "ética". ". Ética poderia ter o sentido, que considero primordial, de acabar com a miséria. Isso é muito evidente em observadores estrangeiros, como Darwin, que visitou o Brasil e declarou: "Nunca mais passo em um lugar que tem escravidão". Até jornalistas contemporâneos estrangeiros, independentemente da visão política que tenham, dizendo que a nossa chaga maior é a miséria. No entanto, a tendência mais forte, recentemente, é colar a palavra ética à corrupção. Essas duas ideias de ética não são necessariamente contraditórias. Para tornar o país ético é preciso acabar com a miséria e também com a corrupção.

Alberto Carlos Almeida: A campanha explicitou um grande problema do nosso sistema político: a escolha dos candidatos. Várias fragilidades de Dilma e Aécio não existiriam se o processo de seleção passasse por primárias efetivamente abertas, sem que o peso de qualquer máquina pública interferisse na escolha. [Barack] Obama é o exemplo clássico. Foi escolhido contra a máquina, que estava a favor de Hillary [Clinton]. Hoje, Obama não tem o controle sobre quem será o candidato democrata para a sua sucessão. As primárias vão escolher o melhor.

Valor: Essa foi a sexta eleição polarizada entre PT e PSDB, em um sistema partidário fragmentado, que colocou 21 partidos no Congresso. Por que essa polarização não consegue nortear o Congresso?

Almeida: O PT perdeu deputados. O PSDB aumentou em relação ao fim da legislatura, mas não em relação ao que elegeu em 2010. Quem ficou mais forte foi o PMDB. É quase inevitável o fim do DEM. Pode até ser que muitos do DEM migrem para o PSDB, que teria chances de se tornar o maior partido da Câmara. Dilma vai ter que negociar, coisa que não fez no primeiro mandato. Vai ter que chamar os líderes partidários, perguntar o que querem. Fazer reuniões periódicas. Fazer o que todo político faz. Tem uma variável nova, que foi o PT conquistar mais espaço nos governos estaduais. Foi a primeira vez que o PT elegeu um governador no Sudeste [Minas Gerais]. Dos três Estados mais importantes do Nordeste, vai governar dois [Bahia e Ceará]. O PT, em 2010, elegeu governadores que abarcavam 15% da população. Hoje são 24%. O PSDB, em 2010, abarcava 47% da população. Hoje, 35%. A distância entre PSDB e PT caiu de 32 pontos percentuais para 11. O PSDB murchou nos governos estaduais, o PT se ampliou. Isso impacta na Câmara, porque os governadores vão negociar com as bancadas de seus Estados, independentemente de partidos. O governador petista de Minas pode induzir mesmo deputados que não sejam petistas a votar a favor do governo. Isso pode beneficiar o segundo mandato de Dilma. Mesmo assim, ela vai ter que aceitar o mundo político tal como ele é, negociar e ceder ao mundo político. Também não está fora do horizonte que a Câmara mande como recado para ela a escolha de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) presidente da Câmara. Ele é um franco favorito dentro do PMDB. Será necessário um enorme esforço do PT para reverter essa tendência. E para reverter, terá que ceder muito ao PMDB.

Ribeiro: O sistema político brasileiro é sofisticado. Mesmo quando produz resultados de que a gente não gosta, essas coisas não se resolvem com uma canetada, o que dificulta a reforma política. Chegamos a um ponto em que é o Executivo que nos salva do Legislativo. Isso é muito ruim. Temos uma tradição de só ver como decisiva a pessoa que escolhemos para comandar o Executivo. Quando vamos eleger o colegiado, não damos grande importância. O Congresso, apesar de ter regras mais democráticas de composição e eleição, também resulta disso. O incentivo ao parlamentar é votar, sobretudo em ano de eleição, agendas que tornem praticamente impossível governar. O Legislativo tende a ser irresponsável. É estrutural. Vai haver maioria a favor do governo. A maior parte dos projetos do governo vai ser aprovada. Os mais polêmicos dificilmente, como se viu no Código Florestal, quando foi aprovada uma legislação retrógrada, mas o veto presidencial evitou os piores males. Mais do que isso é difícil conseguir.

Moisés: Tenho dúvidas se só os parlamentares são irresponsáveis. O Executivo impõe a agenda ao Congresso. Isso tem um impacto enorme no funcionamento dos partidos. Os incentivos para eles funcionarem em relação com a sociedade, com os eleitores, com sua base de apoio, são muito pequenos. Os incentivos são muito mais para os parlamentares aderirem à coalizão majoritária do que para desempenharem o papel de representação, fiscalização e controle. Um segmento importante da sociedade não está identificado com a posição que venceu. Como esses segmentos estarão representados em um Congresso que tem pouca autonomia? Isso aumenta a crise de representação. Nosso sistema tem dificuldade de formar novas lideranças democráticas, capazes de interpretar os desafios desse momento como algo que tem consequência no futuro do país.

Almeida: A Presidência vai ser disputada pelo PT e pelo PSDB a perder de vista. O PSDB tem a base em São Paulo, o PT tem o Nordeste e agora Minas. Rio de Janeiro, Minas e Nordeste, versus São Paulo e o Sul. Isso assegura a existência dos dois. Vão competir sempre. Sobre a fragmentação, o responsável é o Supremo Tribunal Federal, que votou contra a lei que impunha uma barreira de 5% dos votos nacionais para a representação no Congresso. É um absurdo o que acontece no Brasil. Cada um agora tem um partido para chamar de seu. Quem não tem espaço em um partido funda um novo. Esses partidos não representam nada, só a si próprios. Não precisamos de tantos partidos assim para representar os diversos interesses da sociedade. Não há tanto interesse divergente, a política não é assim.

Valor: 0 próximo ano será difícil na economia. Dilma vai ter que fazer cortes e tomar cuidado com onde a corda vai estourar.

Almeida: Dilma gosta muito de ler, mas não leu "Capitalismo e Social-Democracia", de Adam Przeworski. Se tivesse lido, ela já teria composto com os investidores. Ela quer melhorar a vida da população, mas a decisão do investimento está nas mãos dos investidores. Se não investem, piora a situação da população e você corre o risco de perder as eleições. Quase aconteceu agora. Se ela quiser continuar parindo a sociedade democrática e igualitária, paradoxalmente, vai precisar transferir renda dos de baixo para os investidores, nos primeiros dois anos, para que eles invistam e só depois volte o processo de transferência de renda. Tem um mandato de quatro anos. Arrochando os dois primeiros, ela pode liberar os dois últimos. Lula, como bom líder sindical, sabia fazer isso. Essa é a grande diferença entre Dilma e Lula. Ele aprendeu na prática. Ela, nos livros. Ela não compõe com os investidores, tem um ranço anticapitalista.

Moisés: Se ela fizer isso, o ônus vai ser da classe média. Uma das consequências é o imobilismo nessa área da sociedade, e muito dificilmente os partidos vão ter capacidade de mobilizar para fazer a reforma política.

Almeida: Não vai ter reforma porque não tem consenso no Congresso. Reforma política depende dos políticos. É a vida deles. Para o PMDB, é ótimo que tenha um monte de partidinhos. Ele tem poder de influência em todo mundo. A quantidade de pequenos partidos é tão grande que eles juntos têm poder de veto contra qualquer lei que os reduza. A grande reforma seria reduzir o número de partidos, para que os políticos disputem espaço dentro deles. A vida partidária brasileira é oligarquizada e a sociedade está cada vez mais competitiva.

Moisés: A oligarquização dos partidos é algo que temos tido ao longo do tempo. Provavelmente, o único partido que escapa em parte a isso é o PT, porque tem uma vida interna e debate constante. Ainda assim, tem o outro tipo de oligarquização, porque Lula não apenas escolheu sozinho candidatos, como descartou, desqualificou todas as lideranças que, dentro do partido, disputavam com ele. Ele sobrou sozinho. Mesmo o partido que está mais longe da estrutura da oligarquização ainda assim, não é propriamente democrático.

Valor: É possível continuar fomentando uma sociedade mais igualitária sem conflitos? Afinal, as condições econômicas são bem menos favoráveis à conciliação. A estratégia atual está atingindo seus limites?

Almeida: Muito do que se diz sobre o Bolsa Família é mito. Por exemplo, quanto mais Bolsa Família, maior a votação do PT. É mais honesto olhar o crescimento do PIB: o grande tópico sempre vai ser a economia. Nos lugares onde houve crescimento maior do PIB, o Nordeste se destacando, o governo foi mais bem votado. O crescimento foi assimétrico, beneficiou mais os mais pobres. E nos lugares, São Paulo se destaca, onde o crescimento do PIB foi menor, o governo foi menos votado. As pessoas querem mais e melhores empregos. Tanto para Dilma como para Aécio, bastava passar a campanha inteira falando em como gerar mais e melhores empregos. O eleitorado quer isso. O Bolsa Família é pouco significativo.

Fátima: Já temos um estoque de leis, de políticas, não votadas, engavetadas, que estão prontas. Desengavetar é mais fácil que produzir. Talvez o conflito seja menor do que parece, tendo em vista que a sociedade tem Ministério Público, Justiça, todo um aparato de Estado. Muitas dessas políticas acontecem de baixo para cima e acho que vamos ver movimentos no estoque de bondades que estão parados no Legislativo e até mesmo no Executivo. Por exemplo, no tema da violência contra a mulher, há quatro anos existem propostas no governo sobre isso, e só nos últimos meses foram criadas as casas de atendimento à mulher. São pouco mais de 20, em todo o Brasil. Mas esse modelo já está dado e sabe-se que funciona. A Delegacia da Mulher existe há três décadas, foi um mecanismo inovador, basta dar vida aos projetos, mostrar que eles têm existência real. A sociedade tem mecanismos para sair da paralisia e dos impasses, tem dinamismo.

Ribeiro: Isso é um dos muitos problemas que o próximo governo vai ter e Aécio também teria, se eleito. A inclusão social não está completada, não está nem assegurada, porque, se vierem dois anos de represamento, como anunciado, pode até rebaixar o nível de gente que conseguiu uma pequena subida. O mundo político tem sido capaz de esterilizar as demandas que vêm de fora. Como fazer sangue novo entrar na política? Tem bloqueios sérios. Como se consegue passar além da redução da miséria, uma agenda em última análise negativa, para uma agenda positiva?

Valor: Aécio Neves, com essa votação, não é uma opção para 2018?

Almeida: Ele agora vai passar a dormir com o inimigo: José Serra. São dois senadores. Só que Serra tem uma capacidade de trabalho muito maior que Aécio. Já está na mídia dizendo como vai ser a oposição do PSDB, ou seja, já assumiu a liderança da oposição tucana no Senado. E a máquina, quem tem é Alckmin. Em 2006, Alckmin pegou um avião, foi falar com cada governador do PSDB, e foi indicado. Muito fácil fazer isso sendo governador de São Paulo.

Moisés: O grande desafio vai ser Serra e Aécio construírem juntos uma oposição consistente. Não apenas capaz de fazer oposição no Congresso, pressionar as posições do governo, mas também apresentar um modelo alternativo de desenvolvimento. Aécio se credenciou nessa campanha como uma liderança.

Valor: A agressividade da campanha denota algum problema na cultura política brasileira?

Moisés: É uma questão da cultura política que tem muito a ver com comportamento de lideranças. Nesta campanha, passamos além de uma linha que seria razoável. Tem na cultura brasileira um elemento de contrastes muito fortes, mas não chegam a ser confrontos de guerra. Em certo ponto desta campanha, os contendores pareciam estar em guerra. Será que é um traço permanente da cultura política? Não creio. Temos tido, pelo contrário, uma série de mudanças na cultura política dos brasileiros, no sentido de mais interesse, de mais participação, de buscar mais informação.

Fátima: O cidadão não está enxergando mecanismos de mediação. Ele não reconhece representantes partidários, desconfia e tem uma profunda crítica dos políticos. E está um passo à frente da percepção que partidos e analistas políticos têm de certos aspectos, como a corrupção. O eleitor a enxerga como uma forma de não realização, uma forma de drenar recursos que poderiam produzir serviços e bens, e de desequilibrar o que o eleitor tem como pagador de impostos. A mediação terá de ser trabalhada dentro de um sistema político já fragmentado. Mas também por um processo de entender a nova capacidade de informação que o brasileiro tem. A grande transmissão por novas mídias está dando um poder novo à sociedade. O sistema bloqueado como está, o discurso codificado dos políticos, a segmentação da forma como a informação é passada para a sociedade, precisa ser repensado.

Almeida: Isso é a dor do parto de uma sociedade igualitária e democrática. É a quarta vez que o PT elege um representante e a lógica é clara. Quem é mais pobre vota no PT, quem é menos pobre vota no PSDB. Por 16 anos, aqueles que votam no PSDB não se sentem representados pelo presidente. Além disso, está aumentando a igualdade social. O emblema maior é a empregada doméstica. O Brasil tem uma herança escravista e uma das maiores desigualdades do mundo, que vem sendo reduzida. Isso não se faz sem dor e essa animosidade tem a ver com isso.

Valor: Qual é a possibilidade de Dilma entregar a candidatura para Lula em 2018? Foi o primeiro nome que ela citou no discurso de agradecimento.

Ribeiro: Acho um desastre se isso acontecer. Significa que o partido não foi capaz de se renovar. Suponhamos que em 2018 Lula seja o melhor nome que o PT tenha. Suponhamos que ele seja a bala de prata para ganhar a eleição. Em 2022 ou 2026, o PT acaba. No fim do mandato, serão 40 anos da fundação do PT. Se um partido em 40 anos não saiu da mesma pessoa, ele está muito fraco. Essa renovação da liderança está dificílima. O PSB não tem ninguém fora Marina, o PT está entre dois Fernandos: Haddad [prefeito de São Paulo] e Pimentel [eleito governador de Minas Gerais]; e o PSDB, [Geraldo] Alckmin.

Valor: Até que ponto o eleitorado está atento às fraquezas da vida pessoal dos candidatos?
Almeida: A campanha explicitou um grande problema do nosso sistema político: a escolha dos candidatos. Se tivéssemos primárias, o PSDB jamais escolheria um candidato que seria atacado em questões pessoais. As pesquisas mostram que, pela primeira vez, o PT teve mais votos entre mulheres do que entre homens. Por quê? Porque o candidato do PSDB tinha um grande problema na sua biografia. Se o processo de seleção fosse aberto, teria aparecido antes. Primárias seriam melhores para os partidos. Quanto mais abertas as primárias, melhor o candidato escolhido. Mas os nossos partidos são oligarquizados.

Fátima: Essa questão parece submersa, mas está presente na mente das mulheres. O gesto de levantar o dedo contra adversárias no debate, por exemplo. Quantas mulheres já não passaram por isso dentro de casa! As mulheres já têm outro papel na sociedade. O PSDB não tem mesmo visão para a questão de gênero. Eu me lembro de Ruth Cardoso, uma feminista, que dizia: "Não adianta. Esse partido não tem jeito na questão da mulher."

Moisés: Dilma assumiu muito mais esse papel de identificação com temas que interessam às mulheres nesta campanha do que na de 2010. Isso pode ter sido uma marca importante.

Fátima: Na eleição passada ela ficou na defensiva. Com relação ao aborto, ficou silenciosa. Nesta eleição, adotou uma ofensiva forte.

Ribeiro: Parafraseando a Ruth, o PSDB não tem jeito. Não cria capilaridade, não se articula na área sindical, não ouve, não vai buscar os cientistas, os intelectuais, não senta para ouvir. Temos um problema com o principal partido de oposição, que não cria laços na sociedade.

Valor: Marina Silva perdeu capital político por ter sido oscilante e apoiar Aécio?

Fátima: Ela é muito resistente. Aumentou a capacidade de voto. Tinha 20 milhões, passou para 22 milhões. Não é pouco, sendo uma candidata improvisada, depois de uma tragédia. Ela representa uma ansiedade grande da sociedade, dessa mudança na forma de fazer política. Ela formulou uma mudança bem mais radical da política, da representação partidária. Mas não conseguiu sustentar, à luz do eleitor, essa capacidade de transformação.

Ribeiro: Ela não está liquidada. Pelo visto, sempre que alguém vai levar uma goleada, o sistema político que temos no Brasil dá uma sobrevida. Aécio poderia ter sido liquidado há um mês. As indicações de Lula poderiam ter tido um final catastrófico. Se Dilma tivesse perdido, essa imagem estaria acabada. Dos três indicados dele, nas três últimas eleições, [Alexandre] Padilha teve um desempenho pífio [na disputa para governador de São Paulo], Dilma teria perdido e sobraria só Haddad. Serra e Alckmin também poderiam ter sido liquidados por derrotas e não foram.

Almeida: Marina não fez nenhuma proposta clara durante a campanha. A proposta dela era: Banco Central independente. O que isso quer dizer para o eleitor? Nada. Banco Central é um meio para alcançar um fim. O que importa é o fim: gerar mais emprego.

Ribeiro: Marina é um caso clássico de fortuna sem virtude política. Ela não soube o que fazer com a fortuna que caiu no colo dela. Depois de ter 20 milhões de votos, não conseguiu montar o partido. Por mais que ela tenha raiva do PT por ter sabotado o Rede, não é possível entregar os documentos no Tribunal Eleitoral na última hora. O apoio a Aécio foi um erro. Quem é terceira via tem que ser terceira via.

Valor: Como fica o retrato político do Brasil nos próximos anos?

Moisés: Esta campanha deixa desafios que tocam em questões centrais do desenvolvimento político do Brasil desde a redemocratização. Mas estou pessimista com o modo como o sistema vai enfrentar esses problemas. Não sei se a vitória que Dilma teve vai ser suficiente para ela fazer essa correção de conduta, dialogar, ouvir, e até, em algumas questões nacionais, buscar pontes com a oposição. Não vejo sinais nessa direção. Vejo o mesmo problema no polo da oposição. Ela cresceu, mas isso não é suficiente para um desempenho que responda às questões mais urgentes. As oposições brasileiras vão precisar se reinventar. Será que isso vai ser possível com essas pessoas?

Fátima: A resposta vem da sociedade. Tem um consenso de desqualificação dos quadros eleitos, do parlamento conservador, diante de um Brasil muito dinâmico. Existe um crise, que exige resposta, e essas representações não estão conseguindo articular. A resposta virá da sociedade, sua organização em movimentos, sua articulação na capacidade de informar, não só ser informada. E da capacidade das lideranças que não estão dentro dos partidos, mas que fora deles estão tendo um protagonismo extraordinário.

Ribeiro: Estou tendo de rever várias convicções. O caráter agressivo da campanha pode ter sido bom. Foi a campanha que teve mais coisas descascadas. A discussão caiu de nível, mas isso não deixa de ter um aspecto positivo. A gente teve um certo avanço. A agressividade da campanha acaba fazendo sobrar só quem realmente tem resistência e consistência nas propostas. Nosso sistema de eleição presidencial tem um lado bom. As pessoas são bombardeadas. Isso que Dilma sofre há anos, que Aécio sofreu nos últimos meses. O aeroporto de Cláudio. O candidato apanha tanto que tem que ter consistência. Marina recebeu um presente, por triste que seja dizer isso: ela teve pouco tempo de bombardeio e mesmo assim não passou.

Almeida: Agora é pensar no futuro governo. Governo novo, ideias novas. Mudou a estrutura de incentivos. Quando Dilma foi eleita pela primeira vez, ela mesma teria de disputar a reeleição. Agora será outro. De onde virá esse outro? Tem Pimentel em Minas. O Nordeste vai votar no candidato do PT. O Rio de Janeiro também, se cuidarem dele direito. O futuro candidato também pode ser um ministro, dependendo da performance. [Aloísio] Mercadante? Jacques Wagner? Tudo depende da economia. Se ela não fizer a inflexão de política econômica agora, vai perder. E o PSDB também pode ter outro candidato. Não precisa ser Alckmin, nem Serra, nem Aécio. Alckmin tem a faca e o queijo na mão, porque tem a máquina. É tradição brasileira. Quem tem a máquina leva uma vantagem fenomenal. Se ele quiser ser candidato, esquece Serra, esquece Aécio.

Valor: As eleições permitem vislumbrar mudanças da sociedade civil como um todo?

Fátima: Houve uma aceleração muito forte da fluidez da informação. Há segmentos que conseguem, independentemente de partido, expressar novos horizontes para a sociedade. Além da votação das mulheres, a população negra votou massivamente em Dilma. No último momento, Dilma conseguiu captar entre os jovens um volume de votos que lhe garantiu a vitória. Esses segmentos, que não estão representados nos partidos e no Parlamento, vêm formatando políticas públicas ao longo dos últimos anos. São propostas que não encontram ressonância nos partidos. Quando Dilma foi escolhida por Lula, foi uma escolha também oportunista, se aproveitando dessa visão de que alguma coisa, nas frestas institucionais, está modificando a sociedade e tem que rebater na política. Dilma representou uma ansiedade de equilibrar a participação de gêneros.

Ribeiro: O repertório político relativamente pequeno da sociedade é um problema. Militantes e eleitores têm dificuldade de fazer uma tradução política dos problemas e equacioná-los politicamente. As questões da sexualidade, da igualdade feminina, da igualdade étnica, foram aparecendo no Brasil sem ter de imediato a perspectiva política. Não sei se essa transferência de pautas da vida para a política vai continuar. Os rolezinhos, no começo do ano, foram muito significativos, porque tinham um sentido político. Jovens excluídos que querem ter acesso ao templo do consumo, mas sem consciência política.

Moisés: Um dos grandes paradoxos é esse. Das manifestações enormes em cidades importantes não apareceram lideranças com capacidade de liderar e canalizar. É um paradoxo que está relacionado à crise de representação. Qual seria o perfil possível das reformar políticas propostas? Isso não ficou claro em nenhum dos candidatos. Marina falava de nova política de maneira muito genérica. Aécio, afora a questão da reeleição, não elaborou. A manifestação de Dilma tampouco foi clara. Isso pode levar a um novo ciclo de frustração, ao anunciar algo muito relacionada com a energia da mudança mas, com o Congresso dividido, chegar a um fim precoce. Dilma diz que a reforma tem que ser feita com plebiscito. Não dá para resolver os temas da reforma política em plebiscito.

Ribeiro: O PSOL, no fim das contas, talvez seja o único partido consistente ao invocar as manifestações. É o partido mais à esquerda com representação no Congresso.

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