sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Pablo Neruda - O livro das perguntas

Tem coisa mais boba na vida
que chamar-se Pablo Neruda?
Que vim fazer neste planeta?
A quem dirijo esta pergunta?

E que importância tenho eu
no tribunal do esquecimento?
Não era verdade que Deus
vivia no mundo da lua?

Minha poesia desgarrada
abr’olhos com estes olhos meus?
Por que me picam as pulgas e os
sargentos da literatura?

Que dirão da minha poesia
os que não tocaram meu sangue?
Posso perguntar ao meu livro
se eu mesmo o escrevi? Desde quando?

Por que nas épocas obscuras
se escreve com uma tinta extinta?
E por que detesto as cidades
com cheiro de mulher e urina?

Quem devorou rente aos meus olhos
um tubarão cheio de pústulas?
Por que andam as ondas me indagando
sobre as mesmíssimas perguntas?

Por que não nasci misterioso?
Por que cresci sem companhia?
Das tais virtudes que esqueci
dá pra fazer um terno novo?

Onde está o menino que fui:
anda comigo ou evaporou-se?
Sabe que nunca fui com ele
nem ele comigo tampouco?

Por que estivemos tanto tempo
crescendo para essa ruptura?
Quando minha infância se foi
por que nós dois não fomos junto?

Ainda ontem disse aos meus olhos:
quando de novo nos veremos?
Não é melhor nunca que tarde
dentro de listões amarelos?

Em que janela me quedei
em busca do tempo, se pulcro?
Ou o que diviso destes ermos
ainda não passa de futuro?

Que me esperava em Ilha Negra:
verdades verdes? compostura?
Se morri e não me dei conta
morto, a’hora, a quem me pergunto?

Quem me mandou desvencilhar-me
das portas do meu amor-próprio?
É verdade que um condor negro
sobrevoa minha pátria noite?

Que há de pesar mais na cintura:
padecimentos? memórias?
Que deu em mim de transmigrar
se vivem no Chile meus ossos?

Por que me movo sem querer?
Por que estou sempre desinquieto?
E se minh’alma desabou
por que meu esqueleto prossegue?

Por que vou girando sem rodas
e voando sem asas nem penas?
Por que minha roupa desbotada
se agita como uma bandeira?

E que bandeira tremulou
no espaço em que não me esqueceram?
Pois não foi onde me perderam
que eu me dei, enfim, por achado?

Esse onde onde termina o espaço
se chama de morte ou infinito?
Por que voltei à indiferença
do maroceano desmedido?

Achas que o luto te antecipa
à bandeira do teu destino?
Se caí no laço do mar
por que fechei os meus caminhos?

Que significa persistir
no beco da morte-sem-saída?
E no mar do não-passa-nada
mortalha faz algum sentido?

Por que trabalham sal e açúcar
construindo-se uma torre branca?
Onde fica o umbigo do mar?
Por que até ali não chegam as ondas?

Foi das costas do mar que eu vim:
para onde vou quando me atalha?
Não sentes também o perigo
na gargalhada do maralto?

Onde terminará o arco-íris:
dentro da alma ou no horizonte?
Vejo de novo o mar ab ovo:
o mar me viu ou botou banca?

Não choras rodeado de risos
- só – com as garrafas do vazio?
Quanto media o polvo negro
que obscureceu a paz do dia?

Não será nossa vida um túnel
entre duas vagas claridades?
Ou não será uma claridade
entre dois triângulos escuros?

E não achas que a morte vinga
dentro do sol de uma cereja?
Ou que em perigosas substâncias
do não ser, a morte lateja?

Devo escolher esta manhã
entre o céu e o mar, tudo ou nada?
Quem sabe lá de onde é que vem
a morte: de cima ou de baixo?

A morte não seria enfim
uma cozinha interminável?
Ou não seria a vida um peixe
preparado para ser pássaro?

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