sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Uma campanha que custou a sair da defensiva

• Pautada por adversários, Marina não conseguiu divulgar as marcas de sua candidatura

• Candidata teve que enfrentar divergências nos Estados; fez acordo em 14 deles mas há conflitos em outros 13

Daniela Chiaretti e Cristiane Agostine – Valor Econômico

RIO BRANCO e SÃO PAULO - Na manhã nublada de quarta-feira, Marina Silva ligou desesperada para o celular de Brasília. "Carlinhos, me diga que não é verdade", perguntou, como quem não quer ouvir a resposta. "Infelizmente é verdade", respondeu Carlos Siqueira, secretário-geral do Partido Socialista Brasileiro, o PSB, à candidata à vice-presidente. Ele falava de um carro a caminho de Santos; ela, de um flat, em Moema. Às 12h30 de 13 de agosto o Brasil soube que Eduardo Henrique Accioly Campos, 49 anos, candidato à Presidência pelo PSB e ex-governador de Pernambuco, havia morrido em um acidente de avião, junto com mais seis pessoas. A campanha presidencial de 2014 sofria uma reviravolta. Marina Silva chorou, foi para o quarto e se preparou.

A ex-senadora havia se despedido de Campos na noite anterior, no apartamento carioca de Nilson de Oliveira, seu coordenador de comunicação e amigo desde a campanha de 2010, aquela dos 20 milhões de votos pelo Partido Verde. Campos estava feliz com seu desempenho na entrevista ao Jornal Nacional. Tinha 9% na pesquisa Ibope divulgada há poucos dias e acreditava que era só se tornar mais conhecido para melhorar a performance.

"Volte comigo, Marina, vamos poder conversar", insistia o pernambucano. Eles haviam chegado juntos ao Rio, no jato que cairia horas depois no mesmo bairro da casa da sogra de Marina, Neide de Lima, em Santos (SP). Ela desconversava, era melhor que tivessem duas agendas. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e seu candidato a vice, Márcio França, do PSB, estariam lá - dupla que ela não apoiava. Marina queria evitar constrangimentos. Marcaram um encontro às 16h para gravar para o horário eleitoral, que começaria seis dias depois. Faltou combinar com o destino.

O tempo na Baixada Santista estava ruim. O deputado Márcio França, que aguardava na Base Aérea de Santos, viu o jato se aproximar e, de repente, arremeter. Não voltava. Siqueira, que estava em São Paulo com Roberto Freire, presidente do PPS, ligava para o celular de Campos e de seus assessores e nada. Telefonava para França, que dizia que o avião não chegava. A Polícia Federal ligou para o PSB em Brasília, para saber o prefixo do avião. "Foi uma angústia tremenda. Quando a televisão disse que um jato havia caído eu não tive mais dúvida. E então Roberto Freire recebeu uma ligação, e veio a confirmação", lembra Siqueira. É amigo da família Campos há anos.

Marina Silva decolara do Rio em avião de carreira. Tinha reunião em São Paulo com seu "núcleo duro" - Nilson de Oliveira, Bazileu Margarido, Carlos Vicente, Pedro Ivo, Walter Feldman, Neca Setubal. A filha Moara também estava lá, com o namorado, Paulo. Oliveira chegou ao flat preocupado. O avião de Campos estava atrasado 45 minutos e não havia sinal dele. A comoção foi forte na sala depois do telefonema a Siqueira. Aquele grupo nunca mais seria o mesmo.

O país se comoveu com a tragédia, a vida do político sorridente interrompida no auge, o sofrimento da viúva Renata e os cinco filhos, as lágrimas dos parentes dos outros seis mortos. Seguiram-se dias de doloroso resgate de corpos até o enterro de Campos, em cenas tristes de um Recife enlutado. Marina se recolheu e pediu aos colaboradores que não discutissem o futuro até os funerais. Mas era impossível controlar as especulações. O frenesi político queria superar as perdas e seguir com a vida.

Correntes distintas disputavam o poder no PSB. A mais forte queria Marina candidata da Coligação Unidos pelo Brasil. O movimento contrário a ela - protagonizado pelo grupo paulista -, preferia que o partido não lançasse ninguém. O deputado federal Beto Albuquerque, do PSB gaúcho, pediu que ela o recebesse. Queria expor as tensões dentro do partido e manifestar solidariedade - dias depois seria indicado como vice na chapa, escolha que não teve participação de Marina. O grupo ligado a Roberto Amaral, atual presidente do PSB, cogitou lançar a deputada Luiza Erundina (SP); depois pensaram nela para vice, mas desistiram. O PSB de Pernambuco ventilou colocar a viúva de Campos como vice ou garantir espaço com um político local. A definição do nome aconteceu no domingo, depois do enterro de Campos, em uma conversa entre Amaral, Siqueira, Albuquerque e o deputado federal mineiro Julio Delgado. O anúncio formal foi feito dois dias depois. A chapa deu certo: Albuquerque assumiu a negociação política com candidatos e partidos que Marina não queria, mas que Campos havia costurado.

Já estava claro que a ex-seringueira Marina, 56 anos, tinha apoio popular e da família de Campos para tornar-se candidata. A consagração aconteceria em Brasília, oito dias depois da tragédia. Pouco antes da reunião da Executiva do partido, um encontro entre lideranças do PSB e do grupo de Marina na Fundação João Mangabeira procurou alinhar os discursos. No meio da conversa, Marina disse que faria algumas trocas no comando da coordenação. Queria puxar as finanças para si e nomeou Bazileu Margarido como coordenador. Abriu para que o PSB indicasse quem quisesse e teceu elogios a Siqueira. Mas algo deu errado: Carlos Siqueira recebeu mal aquilo tudo, disse que era uma deselegância o que se fazia com ele e anunciou a retirada do apoio a Marina. Saiu em disparada, sem aceitar desculpas, surpreendendo todos. Erundina foi escolhida para a coordenação, no lugar de Siqueira, e Walter Feldman, o adjunto. Oliveira continuaria na comunicação e Pedro Ivo, na mobilização.

Uma fornada de pesquisas começou a sair: Marina empatava com Dilma Rousseff no primeiro turno, com 34% (Datafolha), no fim de agosto, e 33% (Ibope), no começo de setembro. Aécio Neves (PSDB) parecia carta fora do baralho. O PT ficou desnorteado com a arrancada da rival. João Paulo Capobianco, braço direito de Marina no Ministério do Meio Ambiente, seduzia o agronegócio conseguindo apoio explícito dos produtores de álcool, ressentidos com o desamparo do governo Dilma. O mercado financeiro vibrava com a proposta de um Banco Central independente. A Bolsa subiu. Com agenda lotada, Marina perdia peso, mas brilhava.

Na sexta-feira, 29 de agosto, o bufê Rosa Rosarum, em São Paulo, lotou para o lançamento do programa de governo - a base de sua aliança com Campos. Eram 242 páginas de um livro de capa verde que Marina viu pronto apenas naquele momento.

A euforia durou pouco. Dois erros colocariam nuvens negras na campanha. Um deles teve preço político altíssimo.

Campos e Marina dividiram a leitura do calhamaço e depois trocaram as metades. Cada um tinha um método: ele lia tudo, questionava, comentava e morreu antes de ler o último dos seis capítulos, onde estão propostas para a comunidade LGBT. Marina distribuiu o material a seus assessores para que lessem a compilação consensuada das milhares de propostas e dessem seu parecer. Depois lia as observações e alterava o que não concordava. Uma equipe foi contratada para fazer a sistematização das propostas. Na coordenação de tudo, Neca Setubal e Maurício Rands. Marina não leu a versão impressa.

O primeiro erro apareceu logo que o evento terminou. Embora o capítulo sobre energia não citasse nunca o nuclear, respeitando a oposição de Marina e Campos à fonte, o termo escapou e apareceu no capítulo sobre inovação. A imprensa recebeu a errata às 21h20.

O recuo mais grave veio no dia seguinte e versou sobre as propostas para a comunidade LGBT. Com um texto mais liberal até do que o PT pregava, o programa de Marina defendia o projeto que criminaliza a homofobia, em tramitação no Congresso; defendia o fim dos obstáculos à adoção de crianças por casais homoafetivos e estimulava o desenvolvimento de material didático sobre orientação sexual.

Recém-saído do bufê, Nilson de Oliveira recebeu um alerta de sua equipe que monitora as redes sociais. Algo estava estranho. Ele, Rands e Feldman se deram conta de que o texto não correspondia ao que Marina defendia - alguém mandou o arquivo errado para a gráfica. Marina ficou irritada e passou a responsabilidade aos assessores: "Decidam vocês o que fazer". A ideia de não corrigir e evitar a repercussão negativa se tornou impraticável - Marina não sustentaria publicamente o que estava escrito. Decidiram pela errata e por pagar o preço do incrível erro.

Enquanto isso, no twitter, internautas perguntaram ao pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, o que havia achado do texto. Às 22h56 ele partiu para o ataques. "O programa de governo do partido de Marina é pior que o PT e o PSDB, no que tange aos direitos dos gays. Apoia descaradamente o casamento gay e pede, inclusive, a aprovação do extinto PLC 122, que, entre outras coisas, põe pastor na cadeia." Disse aguardar Marina.

A errata chegou às 10h50 do sábado, mas o recuo foi associado à pressão do pastor. A campanha negou qualquer tipo de influência de Malafaia, mas o dano já havia sido feito. "O custo político foi muito alto. Abriu uma brecha para quem não tinha sequer programa desqualificasse nosso trabalho", analisa um assessor. Marina não conseguiu se livrar da pecha de fundamentalista e conservadora.

O bombardeio seguiu, conforme PT e PSDB reviam suas estratégias e se refaziam do susto das pesquisas. Dilma usou o horário eleitoral para acusar a adversária de querer acabar com o pré-sal. Em palanque, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva gritava que, se necessário fosse, se jogaria no mar para arrancar a riqueza do petróleo. O programa de Marina, ao defender uma economia de baixo carbono, nunca disse que não exploraria o pré-sal, mas não resumiria o futuro ao combustível fóssil.

Marina estava no auge das pesquisas e a estratégia de campanha do PT foi de desconstrução da candidata. O ataque mais polêmico veio da campanha de Dilma. Uma propaganda mostrava banqueiros felizes e depois retirava pratos de comida da mesa de uma família, com o locutor dizendo que isso aconteceria com a autonomia do Banco Central. Outro golpe foi sugerir que os adversários de Dilma acabariam com o Bolsa Família. Ex-petista, Marina chorou ao ouvir os ataques de Lula, o velho amigo. "Também amo Marina", respondeu o petista, dias depois. "Mas eleição não é questão de amor."

A campanha começou a se ressentir do fogo cerrado. Marina ficou na defensiva, pautada pelas críticas dos rivais. Em resposta, disse que diante dos ataques ofereceria a outra face. Não foi suficiente. A candidata do PSB despencou nas pesquisas enquanto Dilma e Aécio subiram e 34 dias depois do lançamento do programa, a petista cresceu de 34% para 40% (Datafolha). O tucano subiu de 15% para 21%. Marina caiu de 34% para 24%.

Com um sexto do tempo de televisão de Dilma e sem conseguir revidar os ataques, Marina também patinou ao enfrentar os problemas nos palanques estaduais. Ao assumir a candidatura, teve que enfrentar divergências em metade das alianças: em 14 Estados houve acordo, mas em 13 há conflitos. Com Campos, havia combinado fazer duas agendas conjuntas e cinco separadas a cada semana, para dar visibilidade à candidatura e driblar os conflitos estaduais.

A "nova maneira de fazer política" obrigou acrobacias no calendário de comícios. Escalado para subir nos palanques em que Marina se recusa, Albuquerque foi a Campinas (SP), em evento organizado pelo PSB local com a campanha do tucano Alckmin, a cerca de duas semanas das eleições. Marina foi à cidade, a mais populosa do interior paulista, dois dias depois, no mesmo local do ato com tucanos.

No palanque e no horário eleitoral, Marina dedicou-se a falar sobre o que não vai fazer. Não vai acabar com o Bolsa Família. Não vai reduzir direitos trabalhistas. Não vai parar de explorar o pré-sal.

Em comício no interior da Bahia, Marina usou sua vida como exemplo para desmentir o boato sobre o fim do Bolsa Família. Quem passou fome "na própria carne", disse, jamais acabará com o programa. No palanque, deixou para trás termos impenetráveis como os "núcleos vivos da sociedade", frequentes em 2010. E reclamou do discurso do medo contra ela: "Se o povo brasileiro fosse medroso, não pegava no cabo da enxada para ir trabalhar na roça, não teria enfrentado a ditadura".

A artilharia reforçou a ofensiva. A campanha petista a comparou aos ex-presidentes Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello, que não terminaram seus mandatos. O PT vinculou a coordenadora do programa de governo, Neca Setubal, herdeira do Itaú, aos interesses dos banqueiros. Explorou a contradição de Marina ter dito que votou a favor da CPMF, quando votou contra em plenário. A candidata reclamava dos ataques, negava acusações e respondia como podia. Mas não conseguia conter a destruição.

A campanha seguiu movimento pendular, de vai e vem, ataque e esclarecimentos. Se prometeu "atualizar" a legislação trabalhista a um grupo de empresários, - sem detalhar o que pretendia - teve que articular às pressas um comício em São Bernardo do Campo para negar acusações de que flexibilizaria leis trabalhistas. Marina se disse vítima de "fofocas". "Podem caluniar, dizer o que quiser, mas o meu testemunho de vida está marcado na carne", reagiu em Manaus.

O comício mais comovente foi no Recife, na última semana de campanha. Marina levou ao palanque a viúva e quatro dos filhos de Campos. Em discurso emocionado, João, o mais velho, lamentou a perda do pai, mas agradeceu a Deus por aproximá-lo de Marina: "Meu pai se transformou no que esperava, nos seus ideais e nos seus sonhos." De microfone na mão, Marina dizia que não ia entrar na guerra de marqueteiros dos rivais.

A estratégia de comunicação de trincheira é apontada pelos assessores próximos de Marina como um dos principais problemas da candidatura no primeiro turno. Se é para manter o que já existe, analisaram, como convencer o eleitor a mudar? No balanço do comando da campanha, Marina passou tempo demais sendo pautada pelos adversários, sem apresentar seu projeto. Nas conversas com o responsável pelo marketing da campanha, o argentino Diego Brandy, Marina recusava-se a partir para o ataque contra Dilma e Aécio. A falta de um tom forte contra Malafaia também irritou os conselheiros.

Outro problema foi ter herdado uma campanha já pronta, a menos de dois meses da eleição, sem conseguir imprimir marca própria. As principais propostas apresentadas por Marina foram escolas públicas com turno integral e passe livre para seus estudantes. Eram ideias defendidas por Campos. O desenvolvimento sustentável e as bandeiras socioambientais, tão próprias de Marina, sumiram.

Marina também se viu diante de turbulências do PSB, mas procurou se manter distante das brigas de poder internas do partido que a acolheu há um ano. "Hospedeiro não se mete na casa do hóspede", diz um interlocutor.

A desvantagem no tempo de TV - dois minutos contra os quase doze de Dilma - desaparece no segundo turno, quando todos têm 10 minutos. Se a candidatura passar à segunda fase, mais tempo de TV pode ser um problema. Diego Brandy não tem experiência em campanhas presidenciais no Brasil - atuou na de Campos ao governo de Pernambuco e de Geraldo Julio (PSB) à Prefeitura do Recife, mas nunca como estrategista. Marina recusa um marqueteiro que defina seu discurso. O cineasta Fernando Meirelles, que a ajudou em 2010, será um consultor informal e tem ajudado no reforço das equipes de produção e criação.

O jornalista Antonio Alves, o Toinho, velho amigo e conselheiro da candidata do PSB, cuida do roteiro, edição e articulação da estratégia da campanha com a equipe de Brandy. Toinho trabalhou no passado em campanhas do PT no Acre e é conhecido pelas boas ideias e capacidade de improviso - certa vez, em campanha pobre, criou um teleprompter de cartolina enrolada em um cabo de vassoura. Comparada com o poder de fogo de Dilma, a campanha de Marina -para ficar em uma imagem ao gosto da ex-senadora - é mesmo uma batalha de Davi e Golias.

Marina fechou a campanha com o risco de não avançar ao segundo turno. A equipe sentiu a tensão e o desânimo. Na sexta-feira, durante a preparação da candidata ao debate da TV Record, Neca Setubal passou mal e foi para o hospital. Sintomas do stress dessa fase da campanha. "As mentiras do PT colaram", lamentava um assessor. Na reta final (diferente da disputa de 2010, quando subia nas pesquisas), seu desempenho estava em declínio e muito próximo ao de Aécio Neves. Caciques do PSDB atribuíam parte da "culpa" de sua queda também aos ataques de Aécio. "Em eventual aliança de ambos no segundo turno, o compromisso terá que ser com a adesão ao programa e não com a promessa de cargos", adianta um assessor de Marina. A única coisa certa, se a candidatura sobreviver às urnas no domingo, é que Marina Silva terá que falar do que não falou - de sua visão de um Brasil sustentável. E esclarecer o enigma que persiste até agora - com que dinheiro, afinal, foi pago o jato que matou Eduardo Campos.

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