domingo, 30 de novembro de 2014

Merval Pereira - A democracia ameaçada

- O Globo

A democracia representativa em contraposição à democracia direta, com o uso de plebiscitos e consultas populares, este foi um debate importante no seminário da Academia da Latinidade realizado em Omã. De um lado um dos maiores filósofos da atualidade, o italiano Giani Vatimo, defensor de políticos "carismáticos" como Lula, Chavez e Fidel Castro e crítico das democracias "assépticas" que dão, segundo ele, mais valor ao equilíbrio do orçamento e à estabilidade política do que às paixões que podem transformar a sociedade.

Às críticas à democracia representativa, o especialista espanhol em filosofia política Daniel Innerarity, da Universidade do País Basco e professor visitante do Instituto Europeu em Florença, lançou um repto: não teríamos uma democracia aberta e uma política fraca, consequência de uma época em que a despolitização da democracia parece a muitos uma solução?

Como se estivesse respondendo às críticas do filósofo italiano Giani Vatimo de que tratei na coluna de ontem, Innerarity advertiu que a democracia pode ser seriamente ameaçada por procedimentos democráticos que permitem o acesso àqueles que querem destruí-la, mas também por que certos procedimentos claramente democráticos, se mal utilizados, podem prejudicar a qualidade da democracia.

"Há demandas por democracia direta ou plebiscitária", exemplifica ele, ou "a crença na transparência como um princípio universal". Nesses casos, garante Innerarity, o surgimento de governos populistas é apenas um sintoma de uma época cujos fracassos só superaremos se nos engajarmos na defesa da política contra a democracia despolitizada.

Ele constata que a possibilidade de exercer o que Pierre Rosanvallon chamou de "contrademocracia", devido aos avanços tecnológicos, e a não participação em eleições, por exemplo, não significa a falta de interesse desses cidadãos no espaço público. O novo ativismo, é individualista, isolado, orientado para questões de estilo de vida e crescentemente apolítico.

O professor espanhol diz que as pessoas mais indiferentes à política no seu formato tradicional são as mais ativas em arenas alternativas ou extraparlamentares, e acreditam que a não participação em eleições é uma decisão política. "Vivemos em uma sociedade que não quer mais ocupar o poder para realizar certos processos sociais, mas que em vez disso quer evitar abusos de poder. A sociedade contemporânea prefere a transparência no presente a responsabilidades futuras, e exerce a desconfiança da soberania negativa".

Daniel Innerarity diz que a democracia representativa sofre com a ambivalência de cidadãos cujas demandas desarticuladas são frequentemente contraditórias, incoerentes e disfuncionais. "É um tabu falar desse perigo, pois muitos da classe política e dos que escrevem sobre política adoram o povo e não o cobram de nenhuma responsabilidade".

O professor espanhol considera que a democracia representativa é a melhor invenção a que chegamos para conciliar, não sem tensões, o princípio de que o cidadão é o único soberano na democracia, com a complexidade dos negócios políticos.

"Por paradoxal que pareça, não há outro sistema como a democracia indireta e representativa quando se trata de proteger a democracia da imaturidade, incerteza e impaciência do conjunto dos cidadãos", analisa Innerarity que cita as pesquisas de opinião e expectativas exageradas por transparência ou soluções imediatistas como as ameaças modernas à democracia, e classifica como "tragédia contemporânea" o fato de que eleitores e eleitos são continuamente forçados a escolher entre a racionalidade e o populismo, por que "os governos são inábeis para explicar suas decisões e os cidadãos são incapazes de entendê-las".

Innerarity acha que esse drama imobiliza os políticos "que sabem o que teriam que fazer, mas não sabem como se reeleger caso o façam". Uma de suas críticas mais agudas é para a transformação de eleitores em consumidores, o que faz com que a política se misture com o imediatismo de curto prazo. Essa seria a consequência do predomínio das pesquisas de opinião e dos plebiscitos, que fazem com que a política se preocupe apenas com as demandas do momento presente.

Para Daniel Innerarity, seria preciso que os cidadãos, além de criticar, se educassem no engajamento pessoal da política. Talvez assim, diz ele, entenderíamos que estamos em uma situação paradoxal na qual ninguém confia na política, embora existam coisas que somente a política pode resolver.

Ele está falando, claro, sobre a política no sentido mais nobre, e não em politicagem.

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