quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Pós-eleição - Número de brasileiros na extrema pobreza aumenta

• Dados do Ipea confirmam que percentual de extremamente pobres subiu de 3,6% para 4%

Clarice Spitz, Demétrio Weber – O Globo

Sim, miséria aumentou

RIO e BRASÍLIA - Passadas as eleições, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) informou que o número de brasileiros miseráveis subiu no ano passado. O Ipea esperou o fim do segundo turno para alimentar seu banco de dados com a informação, da qual já dispunha - e isso foi feito sem que a atualização fosse divulgada à imprensa. Os números oficiais confirmaram que, depois de dez anos de queda consecutiva, o percentual de miseráveis subiu de 3,6% em 2012 para 4% no ano passado, entre os brasileiros com renda per capita inferior a R$ 70 por mês (linha do programa Brasil Sem Miséria). Houve um aumento de 870 mil, e agora essa fatia da população passa de 8 milhões.

Em 2004, a proporção de pessoas extremamente pobres era de 7,6%, e esta vinha caindo de forma sistemática até 2012, quando atingiu a mínima de 3,6%. Ainda segundo o Ipea, 10,452 milhões de brasileiros não tinham o mínimo para garantir as necessidades calóricas básicas - em outra linha de pesquisa, do Fundo das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) -, cerca de 370 mil a mais que no ano anterior. Por outro lado, os brasileiros pobres passaram de 30,350 milhões para 28,698 milhões.

Após a divulgação da Pnad 2013, o GLOBO já havia divulgado que a miséria subira no ano passado, com base em outros estudos que consideram linhas de pobreza diferentes. Os pesquisadores associados do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets) Andrezza Rosalém e Samuel Franco calcularam um aumento do número de miseráveis 6,1% para 6,2% em todo o país no último ano, entre os brasileiros que recebem cerca de R$ 123 - acima do recorte usado pelo governo, de R$ 70. A pesquisadora Sonia Rocha, especialista em desigualdade e pobreza e também do Iets, foi outra que constatou a alta da miséria. Pelos cálculos da economista, houve aumento do percentual de miseráveis de 4,1%, em 2012, para 4,7% (sem o Norte rural), no ano passado, a maior alta desde 2008. O assessor da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) Rafael Osório também confirmou a alta e disse, na época, que o maior número de pessoas que se declararam com "renda zero" - grupo que recebe pelo trabalho apenas moradia, alimentação, roupas, vales-refeição ou transporte e medicamentos - tinha puxado para baixo a renda média de quem está abaixo da linha de pobreza.

Especialistas consideram que a parada no ciclo de melhorias se deveu ao cenário econômico, com menos crescimento e um mercado de trabalho menos dinâmico. O desemprego maior - segundo a Pnad, este passou de 6,1% em 2012 para 6,5% no ano passado - atingiu os mais desfavorecidos. Enquanto na média a renda ainda tem crescimento real, os 5% mais pobres tiveram impacto da inflação e foram o único grupo com recuo nos rendimentos de 11%, nas contas de Andrezza e Samuel, do Iets.

- Esse dado reflete o fato de que é preciso ter uma condição macroeconômica compatível para reduzir miséria. O poder econômico se deteriora com inflação contínua. Antes havia uma tendência de queda, e agora temos essa reversão - afirma Flavio Comim, da UFRGS e da Universidade de Cambridge.

Franco, do Iets, também vê um impacto da economia mais fraca e um possível esgotamento do alcance dos programas de transferência de renda:

- A economia está pior e houve um esgotamento do processo de transferência de renda, que não está conseguindo alcançar esse grupo, porque agora é mais difícil encontrá-lo.

Críticas ao atraso na divulgação
A decisão de o Ipea só agora divulgar os dados foi alvo de críticas de especialistas. Sonia Rocha afirmou que os microdados do IBGE, já estavam disponíveis desde final de setembro e que a obtenção dos indicadores de pobreza e indigência é trivial:

- Não é uma razão para a defasagem na divulgação. O calendário eleitoral não me parece uma justificativa válida.

Comim vê ingerência política na decisão de não divulgar os dados. Segundo ele, somente a introdução de uma estatística poderia justificar segurar uma pesquisa como essa.

- É preciso pensar não só na independência do Banco Central, mas também na dos órgãos produtores de informação. Além do que, a pobreza vai muito além da insuficiência da renda - afirma.

Andrezza, do Iets, disse que falta ao Ipea um calendário público de divulgações, tal como faz o IBGE.

Dentro do instituto, a decisão de não divulgar as pesquisas de miséria e de desigualdade ainda repercutia mal. Em outubro, o diretor de políticas sociais do instituto, Herton Araújo, colocou seu cargo à disposição por discordar da decisão do Ipea de não divulgar novas pesquisas durante o período eleitoral. O pesquisador Marcelo Medeiros também pediu exoneração da vice-coordenadoria de Estudos de População, Desenvolvimento e Previdência diante da decisão do instituto de segurar as estatísticas.

Entre os pesquisadores, o clima era de que o instituto sofria pressões externas importantes, mas que, depois das eleições, esse tipo de efeito deveria arrefecer.

O GLOBO tentou entrar em contato com o presidente do Ipea, Sergei Soares, e com Herton Araújo, mas as ligações não tiveram retorno.

A ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), Tereza Campello, no entanto, negou que o número de miseráveis tenha aumentado no país em 2013. Segundo ela, a variação apontada a partir da análise de microdados da Pnad revela uma "flutuação estatística", dentro da margem de erro da pesquisa, que é feita por amostragem.

- O que posso afirmar peremptoriamente é que se trata de uma flutuação estatística que está dentro da margem de erro. Em qualquer análise que tome como referência as diferentes linhas de pobreza, não é possível afirmar que aumentou a extrema pobreza. A tendência continua sendo de queda: caem a pobreza e a extrema pobreza - afirmou.

Para ministério, dado certo é 3,1%
A ministra também chamou a atenção para a existência de diferentes critérios de mensuração da pobreza no Brasil. Com relação ao acréscimo de 371 mil pessoas sem renda para ingerir a quantidade mínima de calorias necessárias a uma vida saudável, Tereza lembrou que são adotadas linhas de renda distintas em cada unidade da federação. Segundo ela, essas linhas foram traçadas com base em outra pesquisa do IBGE, realizada ainda na década de 1980, a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF).

O governo federal adota como linha oficial de miséria monetária a renda mensal de até R$ 77 por pessoa. No ano passado, quando a última Pnad foi feita, esse valor estava em R$ 70.

O MDS detectou uma possível incongruência nos dados de renda da Pnad de 2013. Trata-se de um aumento no número de entrevistados que teriam declarado possuir renda zero. Segundo a ministra, a análise de outros indicadores dessas mesmas pessoas indicou que parte delas teria diploma universitário ou máquina de lavar em casa, o que não combina com o perfil de um miserável.

O ministério fez uma simulação, isto é, recalculou os dados, descontando esse contingente. Com isso, estimou que a pobreza extrema no Brasil em 2013, pela linha de miséria monetária, seria de 3,1% da população. Essa questão foi apresentada ao IBGE e ao Ipea e deverá ser objeto de estudo mais aprofundado, de acordo com o MDS.

A ministra rebateu também a acusação de que o governo federal tenha escondido dados. Ela afirmou que os chamados microdados da Pnad estão disponíveis ao público desde 18 de setembro.

- A coisa mais grave que tem sido dita pela imprensa e que é errado, uma injustiça com a presidente Dilma, é que esses dados estavam sendo escondidos. É de uma injustiça e de uma incorreção inominável. Não é leal, porque vocês (jornalistas) e qualquer especialista ou pessoa têm acesso ao conjunto dos microdados. E isso há mais de dois meses - afirmou Tereza.

Neri: decisão foi do Ipea
Em nota, o Ipea também negou que qualquer informação tenha sido escondida, lembrando que, no ano passado, os mesmos dados só ficaram disponíveis em novembro. Em 2013, no entanto, dois dias depois da divulgação da Pnad, em 28 de setembro, o então presidente do Ipea, Marcelo Neri - hoje ministro-chefe da SAE -, comemorou o fato de 1,1 milhão de pessoas terem deixado a miséria.

"A plataforma Ipeadata disponibiliza mais de 7.500 indicadores de diversas fontes, inclusive mais de 200 atualizados anualmente a partir dos dados públicos da Pnad/IBGE, assim como dezenas de outras séries com atualização diária. Nenhuma atualização da base é acompanhada de divulgação à imprensa. Em 2013, a atualização a partir de dados disponíveis na Pnad 2012 foi feita em novembro. Neste ano, com base na Pnad 2013, a equipe técnica atualizou, em 30/10, dezenas de indicadores de evolução da renda, inclusive por décimos da distribuição, bem como índices de pobreza e desigualdade", afirmou o instituto.

Mais cedo, Marcelo Neri seguiu a mesma linha. Ele afirmou que a decisão de não divulgar análises no período eleitoral foi tomada de forma autônoma pela diretoria do Ipea, a fim de preservar a instituição.

- Não houve nenhum estudo "segurado". Existe uma decisão a priori, feita de forma autônoma pela Ipea, para resguardar a instituição durante o período eleitoral, porque existem restrições sobre a capacidade de divulgar dados, existem limitações jurídicas, e o Ipea decidiu de forma autônoma, sem interveniência. Foi uma decisão da diretoria do Ipea.

Neri e Tereza mencionaram indicadores econômicos para refutar a possibilidade de aumento da miséria:

- O que aconteceu nos últimos dois anos foi um crescimento de renda de 5,5% ao ano. Você tem uma estabilidade de alguns indicadores, mas o quadro geral da nação é de avanço muito forte - disse Neri.

- Expandimos o número de famílias no Bolsa Família e ampliamos o valor (dos benefícios). E não tivemos aumento na taxa de desemprego, principalmente entre os mais pobres - disse Tereza.

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