quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Merval Pereira - Os sem-noção

- O Globo

Certos setores da esquerda estão convencidos deque os mais de 54 milhões de brasileiros quere elegeram a presidente Dilma Rousseff são de esquerda, e que a vitória significou uma autorização para aprofundamento de um programa socializante no país, com uma Constituinte convocada por "plebiscito popular" (como se fosse possível outro tipo de plebiscito, palavra originada do latim plebiscitu — decreto da plebe) para realizar uma reforma política, instituição de mecanismos de participação popular — já derrotados no Congresso — e a inevitável "democratização dos meios de comunicação", que nada mais é do que o controle , pelo governo, dos órgãos independentes de informação.

Por isso, as primeiras nomeações do segundo governo Dilma estão provocando grande decepção e divisões na esquerda, que constatam com pesar que, reeleita, a presidente leu com mais pragmatismo o resultado das urnas e foi buscar nas hostes adversárias o homem adequado para estabilizar a economia que ela conseguiu desestabilizar nos primeiros quatro anos. A nomeação de Joaquim Levy para a Fazenda está sendo digerida com muito custo, mas as pressões maiores estão voltadas para os novos ministros da Agricultura, Kátia Abreu, e do Desenvolvimento, Armando Monteiro, dois dirigentes de associações patronais. Politicamente mais frágeis, tornaram- se exemplares de como o Ministério tem uma tendência nada revolucionária, e que poderia bem ter sido escolhido por Aécio Neves.

A análise está correta, mas a ignorância que essa esquerda demonstra das raízes profundas que ancoram as nomeações mostra que um governo que se guiasse por suas obsessões não teria muito futuro. Foi assim também no primeiro governo Lula, que nomeou Roberto Rodrigues para a Agricultura e Luiz Fernando Furlan para o Desenvolvimento, além de colocar o banqueiro internacional e deputado federal tucano Henrique Meirelles no Banco Central. Dilma repete a dose, claramente influenciada pela experiência de seu tutor Lula, mas com diferenças contra si importantes. A começar porque quem estava no comando era Lula, a única liderança incontrastável no PT. Quem ousou confrontá-lo, como Cristovam Buarque ou Suplicy, ou saiu do partido ou ficou nele sem importância.

Sem falar que os tempos econômicos no mundo são outros, muito adversos. Na economia, Lula tinha um petista de alta estirpe no comando da equipe, Antonio Palocci, e estava, portanto, blindada a movimentação conservadora da nova política econômica para colocaras contas nos trilhos. Para melhorar a situação, Palocci convenceu-se mesmo de que o caminho ortodoxo era o único possível para o crescimento do país, depois de longas trocas de ideias com Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central que o PT demonizou na eleição presidencial passada. Mas foi para Arminio que Levy telefonou antes de aceitar a proposta de trabalho petista, pois ele integrou a equipe que preparava o programa econômico para eventual governo do PSDB.

Os economistas que Palocci acolheu em sua equipe foram permanentemente perseguidos por setores petistas que não se conformavam comas novas orientações. Marcos Lisboa, Murilo Portugal e o próprio Levy só permaneceram no ministério enquanto Palocci lhes dava respaldo. Com sua saída, no segundo governo Lula, abriu-se espaço para que a dupla Dilma Rousseff, na Casa Civil, e Guido Mantega, na Fazenda, fosse desmontando as conquistas feitas pelos "conservadores", preparando a derrocada que seria o primeiro governo Dilma.

Nem mesmo os fatos negativos produzidos nos últimos quatro anos são suficientes para convencer esses grupos esquerdistas de que sua receita de aumento de gastos sem base na arrecadação — gerando déficit primário em vez de superávit ; aumento da dívida bruta com a utilização dos bancos públicos como biombos; descontrole da inflação; e balança de pagamentos negativa — levou o país a uma situação de descontrole que só mesmo um salto triplo carpado como o dado por Dilma poderia mudar a perspectiva do país.

Eles ainda acreditam que os eleitores da classe média emergente e os pobres que recebem o Bolsa Família votaram em Dilma ideologicamente , e não entendem que o que esses eleitores fizeram foi votar a favor do conservadorismo , acreditando erradamente que estavam ajudando a manutenção do emprego e do salário . A permanecer essa disputa ideológica contra a realidade que se impõe, vai ser muito difícil Joaquim Levy levar adiante seu projeto. E o escorpião, fiel à sua natureza, vai ferrar quem poderia levá-lo a atravessar o rio a salvo da correnteza.

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