quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

César Felício - Um amanhã que nunca existiu

• Tancredo faria ajuste, com custo político imprevisível

- Valor Econômico

"Que o dia nasça lindo pra todo mundo amanhã. Um Brasil novo e com a rapaziada esperta!", disse Cazuza, para o delírio das 300 mil pessoas que o assistiam. Estava enrolado na bandeira do Brasil, ao terminar de cantar "Pro dia nascer feliz", última música da apresentação da banda Barão Vermelho no festival Rock in Rio, há exatamente 30 anos.

Horas antes, em Brasília, Tancredo Neves havia obtido 480 votos no Colégio Eleitoral, ante 180 de Paulo Maluf, marcando pela via institucional o fim do regime militar do Brasil, e era a isso que Cazuza se referia em sua fala. Como também era a alusão ao fato iminente que fez, na véspera do acontecimento, a plateia entrar em frenesi quando Alceu Valença cantou a música "Anunciação", aquela em que o cantor fala a um ser transcendente: "Tu vens, tu vens, eu já escuto seus sinais".

Mas a distância entre a cordilheira de expectativas que Tancredo despertava e a realidade que enfrentaria, caso não morresse de modo chocante meses depois, seria percebida por Tancredo dias mais tarde, quando, preocupado, pediu para o seu ministro designado para a Fazenda, o então secretário da Receita Francisco Dornelles, viajar para Paris.

Tancredo queria convencer o diretor-geral do FMI, Jacques de Larosière, a firmar a sétima carta de intenções do Brasil para a rolagem da dívida externa ainda com a equipe do presidente João Figueiredo.

A carta havia sido apresentada pelo governo Figueiredo por coincidência no próprio dia 15 de janeiro. Foi apresentada no contexto de uma transição tranquila. Dornelles e seu antecessor, Ernane Galvêas, se encontravam a cada 15 dias e o novo ministro da Fazenda, aliás sobrinho de Tancredo, era o interlocutor do novo presidente com o antigo regime.

Traria um pacote de maldades para garantir o pagamento dos compromissos internacionais, reduzir o gasto público, conter salários e colocar a inflação em trajetória descendente. "Tancredo queria que o próprio Figueiredo assinasse a carta, para contornar o custo político da operação. Ele já havia dito que honraria todos os compromissos assumidos pelo antecessor e, com a carta assinada, poderia fechar um acordo com os credores e depois renegociar uma flexibilização das metas com o Fundo", relata a manobra Dornelles, hoje vice-governador do Rio de Janeiro.

No Brasil, Tancredo também dizia, além da garantia de honrar o que Figueiredo estabelecesse, que não pagaria a dívida com a fome do povo, e que com o corte de despesas supérfluas teria como fazer obras públicas de cunho social. Eram concessões a um país ávido de mudanças, que um ano antes havia presenciado a rejeição da emenda que pedia o restabelecimento das eleições diretas.

O problema é que De Larosière não aceitou colaborar com Tancredo. "O FMI achava que a insistência em que Figueiredo assinasse a carta era para que Tancredo não se comprometesse com a austeridade pedida pelo fundo. O De Larosière avisou que só aceitava negociar o novo auxílio com Tancredo", disse Dornelles, relatando o primeiro revés de Tancredo como presidente, antes mesmo da posse que nunca houve.

A história contrafactual, um exercício tão fascinante quanto duvidoso, no caso de Tancredo é mais fácil de ser contada porque o presidente eleito apresentou uma equipe de governo e posicionou-se publicamente em torno do que pretendia fazer. O presidente que "foi sem nunca ter sido", como o bordão da personagem de uma novela que marcou época alguns meses depois de sua morte, passaria longe de qualquer aventura econômica heterodoxa, como defendia o então fortíssimo PMDB.

Aproveitando que o Brasil estava com um superávit comercial relevante (US$ 11 bilhões) e vinha de um crescimento econômico de 4% do PIB no ano anterior, faria um ajuste fiscal radical. Talvez com custos econômicos menores do que os que existirão nos próximos meses, em função do aperto econômico que está sendo feito por Joaquim Levy. Mas com custos políticos imprevisíveis, uma vez que seria impossível dividir o ônus com Figueiredo.

"Tancredo era um homem de convicções profundamente conservadoras na economia. Estava firmemente convencido que o descontrole dos gastos públicos gerava a inflação. E achava que tinha capital político suficiente para bancar o ajuste. Se há uma coisa absolutamente certa, é que o Plano Cruzado jamais teria existido enquanto ele vivesse", disse Ronaldo Costa Couto, escolhido para ocupar o ministério do Interior na equipe de Tancredo (equivalente hoje à soma das pastas de Cidades e Integração Nacional).

Caso não tivesse morrido, o encontro de Tancredo com as demandas históricas de seu tempo aconteceria no segundo ano de seu governo, em 1986, data da eleição da Assembleia Nacional Constituinte, um compromisso já assumido. Segundo Costa Couto, a intenção de Tancredo era a de impor uma pauta aos constituintes, enviando ao Congresso o anteprojeto elaborado por uma comissão designada para este fim.

Dada a efervescência do momento, em que o MST e a UDR nasciam de forma quase simultânea, seria muito difícil para o conservador político mineiro, que detestou ser homenageado no Rock in Rio, administrar as expectativas.

"O poder de qualquer presidente estaria mitigado, fosse um presidente débil ou forte. A mobilização desencadeada pela Constituinte levava a uma posição autônoma dos congressistas. Havia uma mobilização dos movimentos sociais e Tancredo era um homem das elites, historicamente conciliador e vinculado ao centro político", comentou a historiadora Dulce Maria Pandolfi, professora da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro.

A fragilidade do prestígio de Tancredo podia ser antevista em uma enquete feita pela revista " Istoé" entre os frequentadores do festival do rock carioca. Perguntados sobre o melhor que poderia lhes acontecer, para os entrevistados mais importante que as eleições diretas só "uma grande paixão". Mas ao responderem como seria o Brasil de Tancredo, 47% afirmaram que esperavam uma "democracia fajuta" e 27,5% "uma democracia verdadeira". A euforia talvez fosse mais com a página que se virava do que a com que se abria.

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