sábado, 24 de janeiro de 2015

Cristovam Buarque - Civilização do lápis

• Estamos indignados com maldade do terrorismo

- O Globo

Muitos de nós não compraríamos um exemplar do “Charlie Hebdo" com suas blasfêmias de mau gosto, mas estamos indignados com o ato bárbaro de fanáticos que assassinaram seus profissionais. A liberdade religiosa deve criar respeito a todos os credos e seus símbolos e a liberdade de expressão deve assegurar o direito a quem deseja blasfemar contra eles. Estamos indignados porque o mundo contemporâneo não foi capaz de avançar no exercício pleno da tolerância, com humor sem blasfêmias e sem violência contra quem blasfema.

Estamos indignados também contra aqueles que usam a barbaridade de alguns fanáticos para criar preconceitos contra 1,6 bilhão de pessoas que praticam o Islã, religião com 15 séculos de história. Estamos indignados porque a indignação contra os atos terroristas em Paris não se manifesta com a mesma força contra outros bárbaros atos terroristas como, por exemplo, meninas sequestradas na Nigéria, o uso de criança suicida como portadora de bomba e os bombardeios aéreos contra civis no Iraque e na Palestina.

Indignados porque nossa civilização ocidental ocupa o planeta sem respeitar outras culturas da humanidade: rouba terra, destrói florestas, anula valores e culturas, impõe modo de vida, ridiculariza o que não lhe é similar, e fabrica terrorismo, resultado de humilhação e desespero. Estamos indignados com a maldade do terrorismo e com a insanidade da fábrica de terrorismo.

Estamos indignados e envergonhados porque vencemos as doenças, entendemos o funcionamento do universo e dominamos a natureza para viver confortavelmente, mas não conseguimos controlar nossa voracidade pelo consumo, nossa ganância pelo lucro, nossos fanatismos.

Em consequência, estamos deixando uma civilização do medo para nossos jovens e as futuras gerações: medo do aquecimento global, do desemprego, da droga e da desigualdade crescente. Medo, sobretudo, da violência atual do terrorismo provocado pelo fanatismo religioso e, em breve, pelo desespero da exclusão social ou pelo inconformismo com a destruição do meio ambiente. A fábrica da violência está na economia que destrói a natureza para que 1% da população tenha riqueza maior do que os outros 99%.

Mas temos esperança de que a humanidade possa reorientar nosso destino para um modelo de civilização harmônico com a natureza, entre os seres humanos, suas culturas e religiões, em busca da felicidade com plena liberdade, inclusive de expressão.

Acreditamos que, além das medidas policiais imediatas, a vitória sobre o terrorismo só virá com um imenso programa mundial de investimento em educação das crianças do mundo, ao longo de décadas. Até porque de nada adianta falar em pena de morte a quem deseja ser mártir, de nada adianta defender a liberdade de expressão para 800 milhões de adultos que não sabem ler as ideias escritas nos jornais.

Não foi por acaso que o lápis se transformou em símbolo da luta contra o terrorismo e a civilização do medo.
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Cristovam Buarque é senador (PDT-DF)

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