domingo, 18 de janeiro de 2015

Luiz Sérgio Henriques - O terceiro turno

- O Estado de S. Paulo

Apesar de afirmações ou bons desejos em contrário, é difícil evitar a sensação de que o ano de 2015 não verá nenhum dos atores relevantes "descer do palanque eleitoral", ou a de que toparemos, regularmente, com falas e gestos que lembrarão um "terceiro turno", entendido à primeira vista como sinal de revanche ou inconformismo da oposição derrotada.

Em princípio, não haveria nada de mais nisso numa democracia de massas cujo calendário, a cada dois anos, convoca dezenas de milhões de cidadãos a votar, ora em nível local, ora em nível estadual e federal.

Trata-se de mecanismo virtuoso, e é natural que o cálculo eleitoral de indivíduos e partidos seja, na prática, um exercício permanente: mal se encerra um pleito, começa-se a viver o seguinte. E ainda bem: em democracia, já disse estudioso dotado de raro poder de síntese, contam-se votos, em vez de se cortarem cabeças. Um desses valores "ocidentais" que, com todas as falhas da vida real, são dignos de universalização, ainda que esta só possa ser lenta, difícil e contraditória.

O nosso caso é que - tal como se complicam os orçamentos anuais, quando devem dar conta de um excesso de despesas previstas, mas não realizadas, em anos precedentes - a agenda política está sobrecarregada de "restos a pagar" e contabilidades que aparentemente não fecham ou só o fazem com a decantada "criatividade" nacional. Desta última pode-se esperar quase tudo: brados retumbantes, acenos heroicos a plebiscitos supostamente incontaminados, mudanças radicais dos sistemas de votação e de financiamento, na ilusão de haver o modelo ideal que, como alguns dizem, seja capaz de transformar crápulas em gentis-homens.

O terceiro turno andou povoando a imaginação do partido oposicionista mais importante. Com efeito, a boa lógica permite argumentar que, respeitada a plena legalidade do pleito presidencial, o segundo mandato de Dilma Rousseff tem algum déficit de legitimidade, especialmente se destacarmos um certo processo de "arenização" do PT, que viu minguar os votos em centros urbanos significativos, como o próprio ABC de suas origens, e se consolidou expressivamente em regiões mais dependentes do poder público.

Essa constatação, precisa do ponto de vista da sociologia eleitoral, produziu, no entanto, gestos poucos realistas, como a contestação junto ao TSE da diplomação da presidente eleita: mais do que qualquer outra coisa, um jogo de cena inútil e, como tal, provavelmente destinado à irrelevância. Melhor fariam os social-democratas do PSDB se, logo depois de outubro passado, encarassem a necessidade de estabelecer laços "orgânicos" com a moderna sociedade civil brasileira, majoritariamente aberta a processos de reforma do Estado e da sociedade segundo os parâmetros da democracia representativa e das variadas formas de participação que ela admite e incentiva.

O bloco no poder tem lá sua parcela bem maior de responsabilidades pelo terceiro turno permanente que possivelmente viveremos ou já estamos a viver. É, no mínimo, duvidoso que o partido hegemônico - e valha aqui o sentido negativo do termo "hegemonia" - tenha conduzido uma campanha classista, a não ser que tenhamos rebaixado o conceito de classe ou aceitado a redução da ideia de esquerda ao velho receituário do nacional-estatismo. Uma classe ou conjunto de classes que se afirma politicamente e oferece soluções para os problemas de todos, para o conjunto da população, é algo muito diverso de um conflito publicitariamente encenado entre "ricos" e "pobres", entre "corações valentes" e "filhotes da ditadura" ou do "capital financeiro" - o que, a bem da verdade mais acaciana, Aécio Neves, Marina Silva e o falecido Eduardo Campos nem remotamente são.

A exacerbação da campanha negativa - traço deteriorado das campanhas americanas, especialmente dos conservadores, que não deveria seduzir partido de esquerda em lugar nenhum - deixa cicatrizes, torna tratativas inviáveis, consolida antipatias, impede citações formais, mas de sentido até pedagógico, ao adversário derrotado, cuja participação na luta travada com igualdade de condições legitima o vitorioso acima de qualquer dúvida razoável.

Por paradoxal que pareça, o terceiro turno não está proposto só a Aécio ou a Marina. De certo modo, mudou-se para o interior do governo, no qual, de acordo com os próprios termos do petismo, já batem cabeça o agronegócio e seu contrário, ou os tecnocratas "neoliberais" e os defensores, bem encastelados, da nova/velha "matriz econômica". Isso para não falar de interesses conflitantes entre o PT e o partido do vice-presidente, sempre ameaçado de sofrer enxugamento de quadros pela ação de ministérios, como o das Cidades, passíveis de ser usados, de modo desenvolto, para "corrigir" a força relativa das legendas, tal como saiu desenhada das urnas. A "tecnologia" para tal correção parece existir e os alvos em questão serão sempre, enquanto regras mal traçadas o permitirem, os fundos partidários e os minutos da propaganda em rádio e televisão.

Já houve quem, sagazmente, à vista da herança do mandato anterior, antevisse um terceiro turno de Dilma contra a própria Dilma. Ou, considerando desdobramentos recentíssimos, um ambiente conturbado pela ação mais ou menos encoberta de Lula e seus muitos escudeiros contra as políticas de ajuste, que estreitam escolhas governamentais e abrem caminho para manifestações populares inerentes à democracia, ainda que suscetíveis ao engodo de atos violentos e "revolucionários".

O ciclo petista, de qualquer modo que o avaliemos, tem deixado "restos a pagar" que convém levar em conta. Como esta, apesar dos pesares, não é uma República indefesa, continuaremos a contar votos a cada dois anos, segundo o costume democrático que sempre dá um jeito de se renovar.

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Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'Obras' de Gramsci no Brasil

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