quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Clóvis Rossi - Diálogo com balas não dá

• A proposta do Itamaraty sobre a crise venezuelana é sensata, mas antes é preciso libertar os presos políticos

- Folha de S. Paulo

Em condições normais de temperatura e pressão, seria sensata a pregação do Itamaraty em favor do diálogo na Venezuela, conforme a nota emitida na terça-feira (24), a primeira em que chega perto de dizer algo consistente a respeito da crise no vizinho.

Mais que sensata, a sugestão de diálogo de fato aponta o único caminho capaz de pelo menos desescalar a polarização crescente.

Sensata, mas impraticável no cenário atual. Basta ler o relatório anual da Anistia Internacional, no capítulo referente à Venezuela.

Nele se diz que as forças de segurança empregaram força excessiva para dispersar protestos; que dezenas de pessoas foram detidas arbitrariamente e tiveram negado seu aceso a advogados e médicos; que foram denunciadas torturas e outros maus-tratos a manifestantes e transeuntes; que o sistema judicial continuou a ser usado para silenciar quem criticava o governo; que as pessoas que defendem os direitos humanos foram objeto de intimidação e ataques; que as condições de reclusão continuam duras.

O relatório não teve tempo de incluir o assassinato de um estudante por um policial no próprio dia em que a AI divulgava o documento (e o Brasil voltava a propor o diálogo).

A morte do estudante pode ter sido um acidente, mas é óbvio que o braço do assassino foi armado pela autorização dada pelo governo para que a polícia use balas de verdade para reprimir protestos.

Todo o mundo sabe que o maior problema nas ditaduras não são necessariamente os generais que as comandam, mas os guardas da esquina, que se sentem autorizados a usar a violência contra quem quer que seja. Nessas condições, sugerir o diálogo governo/oposição equivale a propor que o torturado, ainda atado ao "pau de arara", dialogue com o torturador. Impraticável.

Se quiser levar adiante a sua proposta, o Itamaraty primeiro precisa trabalhar (discretamente, é óbvio) para que a oposição venezuelana tenha condições de atuar livremente, sem que o governo use a truculência de costume.

A propósito, o relatório da AI lembra que Leopoldo López, líder do partido opositor Vontade Popular, permanece preso há um ano, sem provas para as acusações contra ele.

Da mesma forma, até no "chavismo" há quem diga não haver provas claras contra Antonio Ledezma, prefeito metropolitano de Caracas e mais recente vítima da truculência do governo. Refiro-me ao cientista político Nicmer Evans, conforme a coluna de terça-feira (24).

Qualquer diálogo governo/oposição teria que incluir López e Ledezma, entre outros. Logo, a libertação dos presos políticos é o primeiro e indispensável passo para que a sensata proposta brasileira seja também viável.

E é urgente agir, mesmo que apenas nos bastidores, porque, nos cálculos do próprio Itamaraty, a situação econômica venezuelana só tende a piorar em março.

É quando pinga nos cofres do governo o produto de um petróleo vendido a um preço baixo.

Já se viu como o governo de Nicolás Maduro usa a truculência para distrair a atenção de seu fracasso na economia.

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