terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Míriam Leitão - Além da escorregadinha

- O Globo

O ministro Joaquim Levy não conseguirá passar para a base política do governo o grau de urgência nas contas públicas se continuar chamando de "escorregadinha" o que aconteceu na área fiscal. Isso serve para se falar em Nova York. Aqui, para ser sincero, terá que ir além do gráfico. Os superávits primários dos três anos anteriores não aguentam um processo de verificação.

Não foi segredo. Os truques fiscais, as alquimias, as pedaladas foram feitas à luz do dia. A equipe que comandou a economia no primeiro governo Dilma estava convencida de que se encontrasse uma nova fórmula contábil estava resolvido o problema. Até que todas as artimanhas deixaram de fazer efeito, e o país teve déficit primário.

Então, o Tesouro não está diante de uma escorregada, mas de um processo de demolição da ordem fiscal nos últimos anos. E foi nesse processo que surgiu o monstrengo que são os R$ 500 bilhões de aumento da dívida pública para transferir dinheiro para o BNDES.

Ao falar para investidores em Nova York, faz sentido que Levy mostre o negativo do ano passado e diga que o governo está comprometido a voltar a ter superávits primários. O mesmo discurso, que subestima a crise, apresentado aqui dentro, principalmente se for feito para os políticos da base do governo, terá o efeito contrário do que precisa.

Se forem descarnados dos efeitos especiais, os superávits de 3,1%; 2,4% e 1,9% dos anos de 2011, 2012 e 2013 serão muito menores. Todas as consultorias e departamentos econômicos dos bancos já haviam montado fórmulas de procurar qual é o número real do resultado primário, por trás do indicador mostrado pelo governo. Ele veio sendo destruído ano a ano, e os números que estão na série histórica mostram um resultado melhor do que o efetivamente conseguido.

Levy também disse que "um déficit nominal de 7% do PIB não é muito sustentável". Na verdade, este número não é nada sustentável. É pavoroso. Além disso, houve um aumento forte da dívida bruta, elevação até da dívida líquida, forte déficit em transações correntes. Os indicadores somados colocam o Brasil numa situação de fragilidade.

Contra isso, o governo tem que agir de forma coesa para enfrentar o problema e superá-lo. E coesão é tudo o que não há no governo ou na base política. O ajuste de Levy já foi objeto de nota pública do PT com críticas. Ontem, ele foi se reunir com o PMDB. Diante dos políticos, é preciso falar com franqueza sobre os riscos que o país corre com a piora visível nas contas públicas.

Levy fica no pior dos mundos. Não pode culpar muito o antecessor e dizer em que situação encontrou as contas públicas, porque, afinal de contas, a equipe era outra, mas a presidente era a mesma. Mas, se ele não diz a verdade, como acha que a base parlamentar vai se unir em torno de um ajuste amargo?

Nos últimos dias, o que se viu foi uma reação forte, principalmente do PT, de ataque às propostas feitas pelos ministros da Fazenda e do Planejamento por parte de integrantes do executivo e da base do governo no Senado e Câmara. Se apresentar o rombo com palavras suaves, e como se fosse um número eventual, só conseguirá confirmar a impressão de que a proposta do governo pode ser desidratada.

Este governo foi leniente com a inflação e descuidado com as contas públicas. O resultado é que temos hoje um déficit nominal de quase 7% do PIB, uma inflação acumulada em 12 meses de mais de 7%. E o país está estagnado, com risco de o número de 2014 ter ficado negativo e o de 2015 vir a também ser negativo, com encolhimento do produto.

É importante que Levy alerte, como fez na entrevista ao jornal "Estado de S. Paulo", no domingo, que o ajuste fiscal não vai parar o país. O PIB já estava parado pelos erros da política econômica anterior. 

Outros problemas vão afetar a economia. E nada têm a ver com o ajuste: a falta de água, a falta de energia, o tarifaço da energia, a crise da Petrobras. Diante disso, recuperar a confiança dos investidores é fundamental, e isso se faz mostrando a coleção de números negativos dependurados em todos os relatórios do Banco Central. A base política de sustentação do governo tem que saber quão insustentável é a conjuntura fiscal do país.

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