segunda-feira, 30 de março de 2015

Alberto Aggio - O bumerangue e o 15M

- O Estado de S. Paulo

A imaginação filosófica comumente se utiliza da mitologia consagrada à coruja de Minerva para buscar compreender a história efetiva. A metáfora do voo da coruja passou a ser usada em relação a acontecimentos ou situações em que o que antes parecia incógnito, nebuloso e enigmático começa a revelar-se. E isso ocorre quando o ocaso de um processo possibilita que se veja o que ele foi realmente, extirpando as zonas de sombra que não permitiam reconhecer a sua natureza. A coruja de Minerva, como dizia Hegel, levanta seu voo ao entardecer, quando os homens se tornam capazes de racionalizar o vivido.

Os fatos que definem a conjuntura política desde a reeleição de Dilma Rousseff sugerem que o processo iniciado em 2003 vive uma curva descendente e de difícil recuperação. Aos poucos amadurece a compreensão tanto da natureza do que se passou quanto o sentimento de que a crise necessitará de uma solução de largo fôlego. Como na natureza, o crepúsculo que possibilita o voo da coruja confia que o amanhecer virá, embora a noite possa parecer longa demais.

Sabia-se que este seria um governo de crises, envolto em turbulências sucessivas. A forma como a eleição foi ganha guardava os sinais das dificuldades que viriam. Tal previsão agora se confirma e o que emerge no horizonte são mais tempestades do que bonança. Não é o caso aqui de sumariar as crises que se acumularam sem encontrar equalização satisfatória. Basta mencionar os escândalos de corrupção na Petrobrás, a inflação, a insegurança quanto ao emprego, além da crescente falta de credibilidade do governo, que se aproxima perigosamente da ilegitimidade. Parafraseando Victor Hugo, na circunstância brasileira já era possível ouvir o ronco da insatisfação, mesmo que "ainda encravado nas entranhas da terra". No dia 15 de março - o 15M brasileiro, para usarmos a maneira atual de registrar os acontecimentos políticos marcantes -, ela veio à tona e explodiram simultaneamente tanto práticas que evidenciavam a raiva e o ódio estancados, explicável, em certo sentido, mas não justificável, quanto a alegria de saber que eram milhões que acalentavam por aquele momento.

É natural numa democracia a existência de protestos de massa contra o governo e, mesmo movidos por sentimentos tão contraditórios, os atos de protesto que ocorreram em todo o País não redundaram em violência. O pluralismo e uma heterogeneidade social ativa marcaram a multitudinária manifestação do 15M, desmontando a tese de elitismo, um argumento de uso corriqueiro do petismo para desqualificar seus opositores. O que se viu foi um movimento legítimo de oposição que pede o impeachment da presidente, mas abraça essa consigna (não consensual entre suas lideranças) como uma bandeira agitativa, reconhecendo que ainda faltam definições jurídicas para tanto. O nosso 15M atestou, enfim, que o PT não detém mais o monopólio das ruas e há na sociedade um antipetismo crescente por motivos os mais diversos.

Mas é justo que se faça um alerta a respeito de uma herança a que não podemos renunciar: a defesa da democracia. E, nesse sentido, intervenção militar ou mudança da Constituição para a realização do impeachment são proposições que devem ser abertamente rechaçadas. Assim como se deve ultrapassar a preguiça mental ao comparar o 15M com outras manifestações realizadas em nossa história. Rigorosamente, ele não repete junho de 2013, uma vez que tem um foco bastante claro. Não é um novo movimento de "caras-pintadas", como em 1992, tampouco uma nova Marcha da Família com Deus e pela Liberdade, como em 1964. Aqui a história não se repetiu, nem como tragédia nem como farsa. Trata-se de história nova, em contexto de evidente ocaso da legitimidade da política comandada pelo PT na última década, algo que parecia indestrutível.

Não se trata, porém, apenas do ocaso do petismo. A sensação é de que os nexos e os valores que possibilitaram os consensos na construção democrática recente também entraram em crise. Não se trata do colapso da chamada Nova República, como advogam, não por acaso, intelectuais do esquerdismo e da extrema direita, mas de uma crise dos referenciais de orientação que devem sustentar as convicções democráticas de uma sociedade. No período da transição democrática, alicerçados na cultura política do liberalismo e da democracia, com seus ideais de liberdade, encampados também pela esquerda, pôs-se em prática um conjunto de alianças políticas que redundou num "transformismo positivo" cujo principal fruto foi a Constituição de 1988. Em função disso, o País é hoje muito melhor do que aquele que queriam Dilma Rousseff e seus companheiros de armas ao buscarem implantar não a democracia, mas uma ditadura do proletariado nos idos da década de 1970.

A partir de 2003, a era petista representou a ascensão ao poder de uma esquerda excludente, que se constituiu como polo no interior do sistema político. Para conquistar a Presidência da República, contudo, o PT celebrou alianças formais e para se manter ainda como polo optou por estabelecer mecanismos de corrupção, por meio de cooptação financeira, para garantir o apoio dos principais aliados, dentro dos quadros do presidencialismo de coalizão. A consolidação dessa política degradante e antirrepublicana cancelaria a renovação daquele "transformismo positivo". O antipetismo das ruas é o retorno do bumerangue lançado por uma retórica polarizada e inconsequente que ajudou a interditar a renovação da cultura política da esquerda.

Não há nenhuma promessa fecunda como saída para a crise. O protagonismo do PMDB parece garantir-lhe a função dirigente de mais um transformismo que pode nascer dos escombros do petismo. Mas, diferentemente do período da transição democrática, nada indica que nele a mudança possa sobrepujar a conservação.

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*Alberto Aggio é historiador e professor titular aposentado da Unesp

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