sábado, 14 de março de 2015

Marco Aurélio Nogueira - Armênio Guedes (1918-2015), comunista que soube valorizar a vida e a democracia

- O Estado de S. Paulo

Com a morte de Armênio Guedes hoje, 12 de março, foi-se uma parte importante da história da política democrática, da esquerda e das lutas sociais no Brasil.

As gerações mais jovens podem não saber de quem se trata. Armênio morreu aos 96 anos. Viveu, portanto, uma vida longa e plena, conheceu o fundamental do século XX e as primeiras décadas do capitalismo globalizado e informatizado em que nos encontramos. Como comunista militante, experimentou de tudo: conviveu de perto com Luiz Carlos Prestes, um de seus maiores antagonistas, integrou inúmeras formações do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, amargou o exílio, frequentou importantes círculos intelectuais, escreveu muito, dirigiu jornais e revistas na clandestinidade e à luz do dia.

Mas não foi um comunista típico, sempre viveu longe dos estereótipos que costumam cercar os comunistas: nunca foi dogmático, não se afirmava pela autoridade, não tinha paciência para rituais, reuniões protocolares e rapapés, não vestia a “capa preta” que o folclore comunista atribuía aos dirigentes supremos do partido, não quis ser herói, jamais achou que a revolução pudesse derivar da ação voluntariosa de quem quer que fosse. Negou tudo isso em palavras e atitudes. Nunca deixou a política em segundo plano, mas nunca fez dela, e de suas ideologias, o critério para hierarquizar ou julgar pessoas. A máxima “ou você está comigo ou está contra mim” jamais frequentou seu dicionário.

Armênio foi comunista a vida inteira, mas foi acima de tudo um democrata que amava a liberdade, o pluralismo, uma boa conversa e um jazz de qualidade. Talvez por isso tenha conquistado uma legião de amigos e admiradores. Despertou, claro, ciúmes e invejas, fez alguns adversários e inimigos. Mas serenamente combateu o bom combate.

Sempre o tive como uma espécie de figura mítica, no sentido que Gramsci atribuiu ao Príncipe de Maquiavel: um personagem ativo, no qual a ideologia política e a ciência política se apresentam não como fria utopia nem como raciocínio doutrinário, mas como uma criação da fantasia concreta que atua sobre a vida para despertar e organizar vontades coletivas.

Mito, também, porque Armênio era aparentemente frágil, discretíssimo, quase não falava em público, não se expunha e nem se exibia, não protagonizava grandes embates e apesar disso — ou precisamente por isso — conseguia irradiar enorme confiança e demarcar um território próprio, coisa que, em política e em ambientes partidários, jamais é fácil. Era um desses gigantes cuja estatura não se consegue dimensionar num primeiro relance, que se revela aos poucos, como se seu magnetismo estivesse oculto. Foi um marxista gramsciano sem que jamais tenha precisado bater no peito para assim se proclamar, um intelectual refratário à verborragia doutrinária, flexível, para quem era mais importante construir consensos e evitar confrontos desnecessários.

Opôs-se firmemente, por exemplo, tanto aos stalinistas dogmáticos que queriam incutir uma “linha política justa” que não interagia com a vida real, quanto aos que, nos anos 1960, imaginaram derrotar a ditadura militar pela via armada. Ajudou a redigir o “Manifesto de Março de 1958”, célebre documento que assinalou a primeira tentativa de renovação anti-stalinista do PCB e que iria, nas décadas seguintes, servir de base para o envolvimento dos comunistas com a luta pela democracia e o combate político ao regime de 1964.

Quando o regime militar começava a se extenuar e a anistia política despontava no horizonte, em 1979, Armênio deu uma entrevista ao Jornal do Brasil, ao lado de alguns outros companheiros. O JB fez um caderno especial com o material, editado por seu correspondente na Europa, Araújo Neto. O estrondo que aquele caderno provocou nos ambientes comunistas e de esquerda foi proporcional à erupção de um vulcão.

Nunca mais os comunistas seriam os mesmos. A iniciativa impulsionou uma extraordinária tentativa de renovação do velho Partidão, em cujo centro estaria a luta pela democracia como princípio, meio e fim: como valor universal, do qual não se poderia transigir. Nas palavras dele: “Houve um tempo em que nós identificávamos liberdades democráticas com o poder da burguesia. Mas a verdade é que, pouco a pouco, a vida foi-nos mostrando que a democracia é algo importante, permanente, para o avanço da sociedade”.

A renovação do partido não deu certo e anos depois o PCB saiu de cena. Mas a democracia avançou e se consolidou no país. O comunismo democrático, tão bem encarnado por Armênio, não somente deu sua contribuição, como permaneceu fornecendo parâmetros para a ação política, a unidade dos democratas, a construção de consensos, acordos programáticos e entendimentos superiores, a recuperação do valor da política.

Armênio permaneceu ativo depois que o PCB desapareceu. Não chegaria mais a mergulhar em novas epopeias partidárias. Persistiu como um farol de orientação, crítica e agregação, um analista cuidadoso da política, um disseminador de cultura democrática, fiel a seu próprio legado.

Armênio Guedes fez da política uma atividade que fluía fácil, que dispensava posições de força ou de poder, argumentos de autoridade e palavras duras. Para ele, “unidade na diversidade” não era um chavão dialético, mas um lema de toda política democrática com intenção reformadora, a alavanca do novo pelo qual ele e tantos outros se batiam. Hoje como ontem: um valor universal. Algo indispensável nestes tempos complicados em que estamos.

Armênio teve uma vida plena, tornou-se uma lenda da esquerda comunista. As teses democráticas com as quais se identificou e a que ajudou a dar forma foram essenciais para que o melhor do Brasil viesse à luz. Germinaram no PCB, mas ganharam força fora dele, funcionando como uma espécie de pedagogia reformadora. Hoje, deveriam ser plenamente recuperadas; nos ajudariam a seguir em frente de cabeça erguida e olhos bem abertos.

Armênio Guedes morreu, mas seu exemplo, seu estilo sereno e suas ideias estão aí. Ao nosso alcance.

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Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp

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