terça-feira, 21 de abril de 2015

Tancredo, o corpo político - Merval Pereira

- O Globo

A tese de que Tancredo Neves, assim como Getúlio Vargas, fez política com seu próprio corpo, defendida pelo ex-porta-voz Antonio Brito utilizando-se dos dotes de jornalista e político, dá bem a dimensão do sacrifício desse homem, que sempre pautou sua atuação política pela defesa dos princípios democráticos.

Getúlio saiu da vida para entrar na História com a reação radical e dramática do tiro no peito contra os adversários. Tancredo, temendo que sua ausência, mesmo temporária, prejudicasse a transição do regime militar para o que chamou de Nova República, forçou o corpo até seu limite máximo, não conseguiu assumir a Presidência da República, mas garantiu a transição para um governo civil utilizando-se do colégio eleitoral, um instrumento da ditadura para eleger o presidente da República de maneira indireta e controlada.

Sua morte produziu uma das mais belas páginas de nossa História recente, com o povo nas ruas lamentando o governo que poderia ter sido e não foi. Difícil dizer se Tancredo seria o grande presidente de que o país necessitava, ou se seu projeto de governo daria certo. O certo é que ele reunia todas as condições para ser bem-sucedido.

Conciliador, nunca deixou de assumir atitudes firmes, quando precisava. Segundo ele, um político "não pode cometer temeridades, mas tem o dever de correr riscos". E ele correu: na reunião ministerial do Palácio do Catete, pouco antes do suicídio de Vargas, defendeu a resistência. Discursou nos enterros tanto de Getúlio quanto de Jango; acompanhou Juscelino quando o ex-presidente, cassado, teve que depor em quartéis do Exército.

Criou o PP para marcar o caráter conciliador de sua política, mas retornou ao PMDB quando o governo militar ditou novas regras eleitorais que prejudicavam a oposição dividida. Foi o único do PSD a não votar em Castelo Branco para presidente, ele que o havia promovido a general a pedido de uma parente quando era primeiro-ministro, e por isso não foi cassado após o golpe militar.

Não é razoável comparar homens notáveis em seu tempo com os de outros tempos e costumes, mas é inegável que fazem falta hoje os tancredos, os ulysses, os thales, os petrônios, que tinham a noção da História e atuavam na política de olho nela, do ponto de vista pessoal mas, sobretudo, do próprio país.

A Nova República veio aos trancos e barrancos até aqui. Não há mais o perigo do golpe militar que Tancredo Neves temia tanto que se descuidou do corpo. Os poucos que pedem a volta dos militares nas manifestações de rua são desimportantes no atual cenário. Passamos pelo período mais longo de democracia de nossa História recente, e as disputas políticas se travam dentro das regras democráticas, ficando os golpes restritos à retórica política.

Já relatei um exemplo pessoal da sua argúcia política, da sutileza com que travava a luta política, e vale a pena relembrar o caso.

Dias após o atentado do Riocentro, ocorrido em 1º de maio de 1981, eu, que escrevia a coluna da página 2 do GLOBO "Política Hoje Amanhã", passava a semana em Brasília e, no dia 4, peguei o voo pela manhã, tendo como companhia o senador Tancredo Neves, que vinha de um encontro com o então governador do Rio, Chagas Freitas.

Fomos conversando sobre a gravidade dos acontecimentos até que, como quem não quer nada, Tancredo comentou: "Homem corajoso esse Chagas. O relatório oficial da polícia confirma que havia mais duas bombas no Puma".

Dito isso, mudou o rumo da conversa com a autoridade de quem não queria se aprofundar no assunto.

A informação era simplesmente bombástica, sem trocadilho: se no Puma dirigido pelo capitão Wilson Machado havia outras bombas, ficava demonstrado que ele e o sargento Guilherme Pereira do Rosário eram os responsáveis pelo atentado, e não vítimas, como a versão oficial alegava.

Telefonei para a redação do GLOBO no Rio dando a notícia para Milton Coelho da Graça, que era o editor-chefe, e ele, empolgado, me disse que fosse para o Congresso tentar tirar mais informações de Tancredo.

No seu gabinete no Senado, Tancredo estava cercado de pessoas, pois o ambiente político estava bastante conturbado.

Consegui puxá-lo para um canto e pedi mais informações "sobre as duas bombas encontradas no Puma".

Tancredo me olhou sério, colocou sua mão em meu ombro e perguntou, como se nunca houvéssemos conversado sobre o assunto: "Você também ouviu falar disso, meu filho?"

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