sábado, 13 de junho de 2015

Alberto Carlos Almeida - O equívoco do fim da reeleição

Valor Econômico / Eu & fim de semana

• Ainda é possível resolver o problema real, em vez de evitar enfrentá-lo, como fez a Câmara, ignorando o que que há de bom no sistema vigente

Os legisladores, no âmbito da Câmara dos Deputados, aprovaram em primeiro turno o fim da reeleição. Trata-se de um erro crasso quando se refere à reforma de nossas instituições políticas. Crasso, em latim, significa gordo, espesso. Era também o sobrenome do general romano Marco Licinius, que, acreditando na pura e simples superioridade numérica de seu exército, atacou um povo persa que impedia a expansão de Roma sem considerar as táticas militares que já haviam sido testadas e aprovadas pelo Império que ele representava. Crasso acabou sendo derrotado.

Convencionou-se afirmar que a reeleição de Dilma desmoralizou o instituto da reeleição. Considerando-se verdadeiro o argumento, os deputados decidiram modificar uma legislação que tem amplo impacto positivo no funcionamento do sistema como um todo por causa de apenas um caso. Se realmente o motivo foi esse, trata-se de algo lastimável. Alguns afirmam que os malefícios da reeleição vão além da eleição presidencial de 2014 e se aplicam a todas as eleições, para governadores e prefeitos. Dizem eles que o uso da máquina se tornou abusivo e que os ocupantes do Poder Executivo, no nível estadual ou municipal, levam grande vantagem sobre seus opositores.

Levantamento feito pelo jornal "O Globo", porém, mostrou que desde 1998 apenas 69% dos governadores e 61% dos prefeitos foram reeleitos. Em 2012, menos que 55% dos prefeitos que disputaram a reeleição venceram e em 2014 somente 11 governadores foram reconduzidos ao cargo.

Sim, apenas 69% dos governadores e 61% dos prefeitos foram reeleitos. Esse número ignora aqueles prefeitos e governadores que estavam em seus respectivos cargos, podiam se candidatar à reeleição e não o fizeram porque sabiam que seriam derrotados. Dito de outra maneira, caso todos os governadores e prefeitos que pudessem disputar sua reeleição o tivessem feito, a taxa de reeleitos seria bem menor. Em jargão científico isso se chama viés de seleção.

Quando se faz um levantamento dessa natureza há viés de seleção que diz respeito ao mundo, diz respeito a como as coisas são: quem não tem chance de vencer acaba não disputando. Governadores e prefeitos podem ter acesso àquela informação por meio de pesquisas de intenção de voto e de avaliação de governo. Já foi demonstrado nesta coluna que governadores e prefeitos com menos de 40% de "ótimo" e "bom" têm poucas chances de ser reeleitos.

É verdade que o uso da máquina por aqueles que estão no cargo se torna um fator que desequilibra a disputa. Ora, diante disso, o que os deputados federais decidiram? Optaram por extinguir a reeleição, em vez de limitar o uso da máquina. Como se afirma corriqueiramente: jogaram fora o bebê junto com a água do banho. Por que não votaram uma lei que obrigue o governante a se desincompatibilizar de seu cargo para disputar a reeleição? Isso limitaria o uso da máquina. Muitas outras medidas dessa natureza poderiam ter sido discutidas e aprovadas. Reduziriam a eventual assimetria que beneficia aquele que concorre à reeleição.

Ao extinguir a reeleição, os deputados decidiram contornar a dificuldade, não a resolveram. A dificuldade a ser resolvida é o uso da máquina em casos de reeleição. Enfrentar essa dificuldade significa não ser superficial, significa avaliar quais os aspectos de utilização da máquina que deveriam ser limitados. Isso já foi feito no passado, ao se limitar inaugurações, lançamentos de obras, novos gastos, publicidade. Ora, caberia agora aperfeiçoar a legislação. Mas, repito, nossos legisladores contornaram a dificuldade, em vez de encará-la de frente.

A dificuldade é grande mestra, nos ensina a tomar consciência de nossos limites, nos obriga a não sermos superficiais. Abolir a reeleição em primeiro turno na Câmara dos Deputados foi um erro crasso também porque foi uma decisão superficial.

Um prefeito, governador ou presidente eleito para um primeiro mandato tem o incentivo institucional para fazer tudo certo se existe a perspectiva de ser reeleito. É de seu interesse ser reeleito. Portanto, é de seu interesse cumprir as regras da administração pública, deixar as finanças em ordem no início do mandato, para que possa investir nos dois últimos anos, tratar bem seus aliados políticos, atender a seus eleitores. Aqueles que não fazem isso são punidos na urna pelos eleitores, ou, como explicitado anteriormente, sequer se recandidatam.

Quando não há reeleição, e isso já está longe em nossa memória, pois antecede 1998, aquele que ocupa o cargo não tem motivos para ser um bom administrador. Há quem recorra ao argumento de que o governante quer eleger o sucessor. Nada disso. O sucessor e aliado de hoje é o futuro adversário e inimigo político. Há muito mais criaturas que se voltaram contra seus criadores do que o oposto disso. Uma coisa é você ser reeleito e outra, inteiramente diferente, é alguém o suceder. São pessoas diferentes, cabeças diferentes, grupos políticos diferentes, interesses diferentes.

Muitos se recordam vivamente dos tempos em que prefeitos e governadores, na impossibilidade de disputarem a reeleição, agiam de maneira a inviabilizar o mandato de seus sucessores deixando dívidas e passivos de todos os tipos. É isso que passará a ocorrer novamente caso a Câmara e o Senado aprovem o fim da reeleição.

Há quem defenda que, com o fim da reeleição, o mandato passe de quatro para cinco anos. Se isso acontecer, as coisas ficarão ainda piores: os governantes terão um ano a mais para deixar passivos para seus sucessores. Tornar-se-ão mais comuns as cenas, que de vez em quando vemos, de prefeituras invadidas e depredadas, governos paralisados, serviços públicos em colapso, além do aumento da chamada judicialização da política. Cinco anos é tempo demais. Se um governo for mal, o que hoje se espera dois anos, passará para três, e o que hoje se espera um passará a ser dois anos. Estará montado o circo para os processos junto à Justiça, além, é claro, das turbas de toda natureza.

Aperfeiçoar as instituições políticas exige paciência. Trata-se de um processo demorado e, com frequência, imperceptível. Passos lentos e seguros permitem que o resultado de cada reforma seja bem observado e avaliado. Assim, o sucesso ou falha do primeiro passo serve para que seja dado o segundo, e assim sucessivamente.

O que os políticos temem é o poder do governo, o enorme Estado brasileiro, que, se utilizado pelos governantes durante a eleição, deixa seus adversários em situação bastante desvantajosa. Ao se abolir a reeleição, essa máquina todo-poderosa e seus usos foi deixada intocada. É incompreensível, por exemplo, que alguém que se candidate a outro cargo tenha que se desincompatibilizar, ao passo que isso não é necessário quando se candidata ao mesmo cargo. Serra teve que deixar o governo de São Paulo em abril de 2010 para concorrer à Presidência, mas Geraldo Alckmin não foi obrigado a se afastar do governo do Estado quando disputou a reeleição em outubro do ano passado.

Manter a reeleição e obrigar aquele que a disputa a se afastar oficialmente do cargo seria um limite importante. Isto poderia ser extensivo para o candidato a vice. Note-se que, no caso, considerando-se a Presidência da República, o governo ficaria nas mãos do presidente da Câmara dos Deputados. Na eleição presidencial, todos os candidatos, com exceção de Dilma, ao concederem suas entrevistas televisivas, tiveram que ir ao estúdio da emissora. Como a lei permite que o candidato fique no cargo, Dilma concedeu várias de suas entrevistas no Palácio da Alvorada. Não fez nada de errado ou ilegal. Teria sido mais equânime, porém, se todos os candidatos tivessem tido o mesmo cenário para suas respectivas entrevistas. Isso pode ser objeto de uma iniciativa legislativa de nossos deputados. Não foi o que escolheram. Seria o equivalente a enfrentar a dificuldade de limitar o poder de quem disputa a reeleição. Decidiram contornar a dificuldade. Lamentável.

É provável que o fim da reeleição seja aprovado em segundo turno na Câmara. Caso a tese perca votos, porém, estará aberto o caminho para que o Senado modifique a decisão. Se de fato a reeleição for abolida, deveria ser inaugurado no Salão Verde da Câmara um busto em homenagem a Orestes Quércia com os dizeres: "Quebrei o Banespa, mas elegi meu sucessor".

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Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de “A Cabeça do Brasileiro” e “O Dedo na Ferida: Menos Imposto. Mais Consumo”

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