quarta-feira, 1 de julho de 2015

Rosângela Bittar - Biografia na fogueira

- Valor Econômico

• Os erros de Dilma são de lógica, com boa ou má-fé

Há uma linguagem característica da propaganda política, do discurso palanqueiro do candidato que depois fica impregnado no governante no qual, se o orador for realmente bom, seu eleitorado engole fácil o gato por lebre, desatento à tentativa de confundi-lo. Competente o autor, a enganação passa até para os mais letrados. Se canastrão for, seu ouvinte nota o erro e cresce o fosso da desconfiança. O estado em que se encontra o eleitorado de Dilma Rousseff é de perplexidade. Contínua.

É difícil caracterizar o objetivo da presidente Dilma Rousseff com os seguidos erros de linguagem, com licença para conceituar assim. O que se tem discutido, nas conversas políticas, é a fronteira entre a propaganda, o pensamento equivocado, o raciocínio torto, o dizer qualquer coisa porque não há nada a dizer sobre denúncias (a má-fé), e o dito por ignorância do real sentido das palavras e dos fatos (a boa-fé).

A presidente vinha de uma série de equívocos - mais recentes, pois antes, em numerosos tropeços de linguagem, já surpreendia seu público com declarações que eram chamadas, às vezes, de nonsense, em outras de gosto pela piada pronta. Agora, ela descamba para o desafio à lógica.

Da mulher sapiens - num momento de paroxismo com a questão do gênero que a levou a exigir desde sempre ser chamada de presidenta, vocábulo com o qual o Brasil não se acostumou já lá se vão cinco anos -, à ode à mandioca, que já foi elogio ao cão, que já foi à bola, e ao desrespeito ladino a determinadas ações, legais e institucionais, como agora à delação premiada, ela transita com naturalidade.

Esse é um instrumento da Justiça para apurar crimes que, é de pasmar, ela própria sancionou, a Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. Em 22 palavras, comparando a legislação de exceção da ditadura com a legislação do estado de direito, Dilma jogou na fogueira de São Pedro, dia 29 de junho, sua biografia de presa política e torturada. Confundiu-se e confundiu, misturou torturador com procurador, corruptor com corrupto, delação por tortura com delação como instrumento da justiça para chegar ao crime e aos criminosos. "Eu não respeito delator, até porque eu estive presa na ditadura e sei o que é. Tentaram me transformar em uma delatora. Eu resisti bravamente", foram suas palavras sobre o conteúdo da delação premiada de Ricardo Pessoa, dono da UTC. Seria o delator Pessoa o torturador do governo?

O ex-ministro Joaquim Barbosa, do STF, relator do mensalão, a voz mais abalizada entre tantas que se manifestaram publicamente sobre os comentários presidenciais, criticou Dilma por "investir contra a lei". Disse que a Constituição permite até o recurso ao STF para questionar uma lei, não "investir politicamente contra ela".

Admita-se que a presidente não quis queimar sua história, não pretendeu incorrer em crime de responsabilidade, não mediu o alcance de suas palavras ou estava apenas apavorada. É difícil, porque ontem, nos Estados Unidos, ela aumentou o tom e voltou às frases desconexas, mas trate-se com boa-fé suas considerações como sendo eivadas só de ignorância. Um erro de português.

Desde já podem se ocupar disso os professores, em especial uma delas, que acompanha com lupa o que se faz, se pensa, se fala e se escreve em Brasília, a também jornalista Dad Squarisi.

Às suas explicações: segundo Dad, são três níveis de erros que se pode cometer com a maltratada língua portuguesa falada e escrita. O primeiro, mais elementar, é o da grafia das palavras, a troca de letra, é deixar de usar um acento. Comete esse tipo de erro a pessoa que não tem familiaridade com a língua escrita. Está se alfabetizando, escreve hospital sem h, casa com z. À medida que vai amadurecendo, aprende. Em concursos públicos, diz (é o que os professores mais corrigem em Brasília), perde-se poucos pontos por cometer esse tipo de erro.

O segundo grupo é o da sintaxe, que a professora considera mais sério. É o da combinação das palavras na frase. É o da concordância. Esse e o da grafia das palavras são erros do mau aprendizado da gramática.

Mas existe um nível de erro, terrível, que não é da gramática mas do pensamento, do raciocínio, da lógica. É o erro que comete a presidente Dilma: o emprego inadequado da palavra, a falta de domínio do vocabulário.

No exemplo da Dad: "Ele tem um temperamento intempestivo". Ora, diz ela, intempestivo nada tem a ver com temperamento, tem a ver com tempo. É falar fora da hora, não cumprir prazos - "a petição foi apresentada intempestivamente" -, portanto, fora do prazo.

Muito parecido com o que temos visto, o erro da lógica é não dizer coisa com coisa. Pode ser pela qualidade de ladino do político, por interesse menor, mas já se convencionou aqui que, na Dilma, é por desconhecimento, que se continue a apostar na boa fé. "Os meninos foram ao hospital, o supermercado estava lotado." Na grafia e na sintaxe está certo, mas uma frase não tem nada a ver com a outra, falta articulação das ideias, organização do pensamento, lógica, reafirma a professora.

Às vezes, a lógica é engolida pelo marketing e a frase é desconexa intencionalmente, uma licença, mas a linguagem de Dilma, convencionou-se aqui, é toda real, de boa-fé.

Ao misturar as delações, Dilma cometeu, na avaliação de Dad, erro de lógica, de raciocínio. "A presidente não fez a diferença entre o delator torturado e o delator que desvenda crimes e que é tão aplaudido pelo eleitorado quanto o que não entrega seus companheiros, sob tortura, por razões ideológicas", diz. O delator premiado com a redução de pena, que Dilma condena, quem sabe no lusco fusco da frase embolada não será confundido com o torturador da Dilma, reconquistando o eleitor perdido no índice de popularidade? Não, isso seria se houvesse má-fé, mas a convenção aqui é que se trata apenas de erro.

Tanto a não delação (sob tortura) quando a delação premiada (instrumento da justiça) são nobres. O que não pode haver é manipulação da palavra acreditando-se na pouca compreensão do eleitorado. A delação de Ricardo Pessoa não foi desprezível, ao contrário. Com ela pode ser possível desvendar um crime de roubo "descomunal" (segundo Rodrigo Janot) de dinheiro público que seria da escola, do hospital, da segurança, avalia ainda Dad Squarisi, acostumada a, em seus livros e artigos, usar exemplos da linguagem dos políticos, com bom humor, para aquietar a impaciência adolescente.

Descompromissada com o sentido das coisas, a presidente não parou, seguiu barbarizando. Ontem, nos Estados Unidos, voltou a falar da delação premiada do dono da UTC, classificando seu conteúdo de "um tanto quanto idade média".

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