domingo, 8 de novembro de 2015

Estados são acusados de driblar lei federal para pagar dívidas

• Verba que deveria quitar precatórios vai até para salários

Prática é questionada no STF pela Procuradoria-Geral da República, OAB e associação de juízes

Pelo menos oito estados, incluindo o Rio, são acusados de usar indevidamente recursos depositados na Justiça para tapar buracos no orçamento. No centro da polêmica, que já chegou ao STF, estão R$ 127 bilhões em depósitos judiciais em geral, conta SILVIA AMORIM. O Congresso permitiu que parte dessa verba quitasse precatórios (dívidas de estados com cidadãos e empresas), mas o dinheiro foi usado até para pagar a servidores.

Caixa com chapéu alheio

• Estados estão usando bilhões vindos de depósitos judiciais para pôr seus orçamentos no azul

Silvia Amorim - O Globo

-SÃO PAULO- Governadores têm pegado carona numa lei aprovada pelo Congresso este ano e replicado nos estados regras mais permissivas para abocanhar recursos de uma conta em poder da Justiça avaliada em R$ 127 bilhões. São depósitos judiciais que, nos últimos meses, diante da crise financeira que assola o país, viraram alvo de uma corrida dos governos para tapar buracos nos orçamentos estaduais de 2015. Pelo menos, oito estados aprovaram leis que estão sendo acusadas de driblar a legislação federal e aumentar a transferência de recursos para seus caixas. Em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, essas iniciativas já resultaram em transferência de R$ 10,5 bilhões de depósitos judiciais para os cofres estaduais.

Bahia, Ceará, Paraíba, Piauí e Sergipe também criaram regras próprias para usar os recursos. Todos os oito estados estão sob a suspeita de uso abusivo desses depósitos. A Procuradoria-Geral da República (PGR), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação de Magistrados do Brasil (AMB) acusam os governos no Supremo Tribunal Federal (STF) de extrapolar os limites impostos por lei federal, chegando a permitir que esses recursos — que deveriam ir para o pagamento de precatórios, dívidas que o poder público tem com cidadãos ou empresas por determinação da Justiça — sejam gastos com salários de servidores, cobertura de rombo da Previdência e despesas gerais dos governos estaduais.

O Rio Grande do Sul, que vive uma das maiores crises fiscais do país, destinou R$ 1,8 bilhão que recebeu este ano para o custeio do governo. Minas Gerais, que resgatou R$ 2 bilhões desde março, está pagando despesas com a Previdência. O mesmo está sendo feito pelo Rio de Janeiro, que recebeu R$ 6,7 bilhões até agora.

Os demais estados não informaram quanto receberam da “poupança” generosa administrada pelos Tribunais de Justiça estaduais. Mas a destinação dos recursos está decidida. Em Sergipe, uma lei de agosto determina não haver “ordem de preferência” para o uso desse dinheiro. O governo tem dito que vai usá-lo para quitar salário de servidores. O estado passa também por uma crise, e a primeira tentativa de transferência de depósitos para o Tesouro sergipano foi marcada por uma trapalhada. Cerca de R$ 147 milhões entraram na conta do governo, mas tiveram que ser devolvidos porque eram de uma outra conta da Justiça que não a de depósitos judiciais.

Equilibrar as contas da Previdência e bancar as despesas com Saúde são a intenção do Ceará para a sua cota de depósitos judiciais. Já a Paraíba pretende usar o dinheiro como garantia para parcerias público-privadas, contrapartidas para convênios federais e investimentos.

CNJ emitiu alerta
Depósito judicial é todo dinheiro depositado em juízo por pessoas, empresas, entidades e poder público. Ele serve para custear o processo e indenizar o vencedor da causa após o trânsito em julgado (quando não cabe mais recurso). Segundo o Conselho Nacional de Justiça, o total de depósitos judiciais nos tribunais estaduais é de cerca de R$ 127 bilhões. Preocupado, o CNJ divulgou no último dia 29 um alerta aos tribunais para que observem a regra de preferência dos precatórios para a transferência dos depósitos.

— Essas leis estaduais são draconianas. Passou um boi no Congresso, e agora os governadores querem passar uma boiada nos estados — afirmou o coordenador de Justiça estadual da AMB, Gervásio Santos.

O interesse dos governadores sobre essa conta bilionária cresceu depois que o Congresso aprovou no primeiro semestre a Lei Complementar 151. Ela permite a governadores e prefeitos sacarem até 70% de um tipo específico de depósito judicial (aqueles em que estado e município são parte da ação) para o pagamento de precatórios. Os outros 30% devem permanecer intocáveis num fundo de reserva. Para as administrações que estiverem em dia com precatórios, a lei libera o uso para pagar dívida pública ou fazer investimentos.

A maioria dos estados não se encaixa nessa situação saudável. Mesmo assim, governadores elaboraram leis para ajustar a chegada desses recursos às necessidades imediatas de caixa. A destinação do dinheiro para despesas que extrapolam o pagamento de precatórios é apenas um dos problemas apontados nas ações no Supremo. A PGR, por exemplo, defende que essas leis estaduais são inconstitucionais, porque estados não poderiam legislar sobre Direito processual.

Em algumas ações, a AMB e a OAB destacam como ilegalidade a transferência para os cofres públicos de depósitos judiciais referentes a ações envolvendo entes privados e que nada têm a ver com o Estado. Elas são a maior parte dos R$ 127 bilhões. É o caso de Minas, Sergipe, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul. Como a lei federal não trata desse tipo de depósito, os governadores viram uma brecha para aumentar os recursos a serem transferidos.

— A forma como eles estão se apropriando desses recursos compromete a segurança jurídica. Tem que haver garantias claras de que não faltarão recursos para o pagamento das partes dos processos e que os valores transferidos irão para precatórios — disse o presidente da Comissão Especial de Precatórios da OAB, Marco Antonio Innocenti.

O pano de fundo para essa corrida por recursos é a crise fiscal decorrente da crise econômica. No mês passado, O GLOBO mostrou que 11 estados decidiram aumentar impostos. Mas esses recursos vão entrar no Tesouro apenas em 2016. Os governadores precisam colocar as contas de 2015 no azul.

No último mês, dois ministros da Corte suspenderam, em caráter liminar, as transferências de depósitos para Minas Gerais e Paraíba até o julgamento da ação.

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