domingo, 15 de novembro de 2015

O inimigo é o fanatismo – Editorial / O Globo

• Ontem, o protagonismo da barbárie era da al-Qaeda. Hoje, é do Estado Islâmico do Iraque e da Síria. Confortada pela solidariedade global, a França reage com o sentimento de união contra o terror

Foi tudo preparado, organizado e planejado além fronteiras, com cumplicidade dentro do país, disse na madrugada de ontem o presidente François Hollande, quando já se contavam mais de cem vítimas fatais e ainda era incerto o número de feridos — entre eles dois brasileiros. “Vamos combatê-los, e seremos implacáveis", complementou, “porque quando os terroristas são capazes de cometer essas atrocidades, devem estar seguros de que terão de enfrentar uma França decidida, unida, em bloco, e uma França que não se deixará atemorizar".

O chefe de Estado francês cumpriu o papel de líder em meio à tempestade, ao clima de estupefação com os atos de barbárie na sexta-feira à noite em Paris. Como todo político, Hollande costuma ser mais lembrado pelos defeitos, mas o tom firme e sereno nas suas intervenções, desde as primeiras horas, estimulou uma reflexão preliminar sobre a gênese dos ataques a uma nação, cuja história é identificada com os valores universais da democracia, do pluralismo, da tolerância, da transigência, da aceitação do contrário. Isso é essencial para a compreensão do que está em jogo hoje e do que é possível vislumbrar neste início de século.

O inimigo é o fanatismo, como está claro desde a tragédia americana no 11 de setembro de 2001. Aparentemente, o objetivo nefasto dos terroristas é, aos poucos, conduzir o mundo a uma Terceira Guerra Mundial, como vem advertindo o Papa Francisco, a partir do acirramento da animosidade entre religiões e culturas.

Entre a derrubada das torres gêmeas, na Nova York de 2001, e o massacre de sexta-feira em Paris, passaram-se 14 anos. A novidade pós-Osama bin Laden é a emergência de uma nova geração do terror. Hoje, múltiplas facções disputam, em sucessivos banhos de sangue, a liderança na condução da bandeira da luta comum, por um novo Califado muçulmano sob a interpretação mais rígida e obscura da Sharia, a lei islâmica. Compõem absoluta minoria extremista do Islã.

Não se pode confundir a jihad no sentido da luta irracional, caracterizada pela violência e intolerância, com o Islã. Assim como os rugidos do terror não podem nem devem ser confundidos com as vozes amplamente majoritárias do bilhão de pessoas que vivem no pacifismo da cultura e da religião monoteísta baseada no Alcorão.

Ontem, o protagonismo da barbárie era da al-Qaeda. Hoje, é do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (Isis, na sigla em inglês, Daesh no acrônimo em árabe usado por Hollande em discurso).

Esse grupo nasceu por volta de 2004, no antigo Iraque de Saddam Hussein, pela capacidade articuladora do terrorista Abu Musab al-Zarqawi, que seguia um manual escrito por um ideólogo da selvageria, Muhammad Khalil al-Hakaymah, para quem os estados inimigos do Califado deveriam ser derrotados pelo “poder do vexame e da exaustão”. A autoproclamada al-Qaeda iraquiana quase feneceu depois de fundada, mas por trapaças da história conseguiu se revigorar ao fim da guerra empreendida pelo presidente americano George W. Bush. Evoluiu para um exército de jihadistas internacionais que, agora sob o distintivo do Isis, dedica-se a fomentar o caos em cultos de morte às liberdades, na defesa de fidelidade absoluta à uma interpretação literal, à sua maneira, dos textos religiosos.

Eles não suportam a vida em liberdade, como lembrou a chanceler alemã Angela Merkel, referindo-se às vítimas em Paris: “Elas queriam viver a vida de pessoas livres em uma cidade que celebra a vida. Os assassinos odeiam essa vida de liberdade”.

A tragédia parisiense, como observou o presidente americano Barack Obama, resgata à memória coletiva o fato de que liberdade, igualdade e fraternidade não são apenas valores que o povo francês se importa tão profundamente, “são valores que todos partilhamos”, e, a resiliência moldada nesses valores vai “muito além de qualquer ato de terrorismo ou a visão de ódio daqueles que perpetraram os crimes”.

C onfortada pela solidariedade global, a França reage indicando a dimensão interna e externa da tragédia: Paris amanheceu ontem com o Exército nas ruas e o país de fronteiras fechadas, sob o decreto de estado de emergência, o que não acontecia desde 2005, com suspensão até do direito constitucional de manifestação.

Os franceses demonstraram sentimento de união contra o terror. Notável o gesto espontâneo dos parisienses, difundido pelas redes sociais durante a madrugada, de abrir suas casas para abrigar pessoas impedidas de retornar aos próprios lares em consequência da abrupta paralisação do sistema de transporte coletivo. Ainda mais simbólica, talvez, tenha sido a cena da multidão que deixou a arena de futebol Stade de France — um dos alvos dos ataques—, entoando La Marseillaise, hino nacional, marcha de impulso ao ânimo patriótico ao qual o general Napoleão Bonaparte atribuía o valor de “muitos canhões”.

Foi o pior ato terrorista na Europa em 11 anos, desde os atentados coordenados em Madri, quando morreram 191 pessoas e 1.800 ficaram feridas. Sete terroristas suicidaram-se nas explosões, um oitavo foi morto pela polícia e, tudo indica, ainda há uma rede doméstica a ser desvendada — sem ela seria inviável a logística na preparação e determinação dos alvos. Tudo às vésperas da Conferência Mundial do Clima, em Paris, com participação prevista de 130 chefes de Estado e de governos.

Provas preliminares sugerem não ter sido coincidência eventos como de quinta-feira em Beirute, no Líbano, quando mais de 40 pessoas foram mortas num ataque bomba que tinha como alvo o Hezbollah, aliado xiita do Irã, em guerra contra o Estado Islâmico. E, também, no início do mês, quando um avião russo com mais de 200 passageiros foi derrubado, por explosão, em sobrevoo pelo Egito. O Estado Islâmico assumiu os dois atentados e, ontem, o de Paris.

É possível que a contundência na resposta “sem piedade”, anunciada por Hollande, venha a ser dada em breve por uma coalizão de França, Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha — sob renovados protestos da Rússia e a pragmática desconfiança do Irã. Esboça-se uma ação militar coordenada e de grande escala contra a insurgência jihadista que ocupa grandes áreas da Síria e do Iraque, incluindo Mosul, a segunda maior cidade iraquiana.

É o cenário de maior probabilidade, na sequência do massacre de Paris. As consequências são imprevisíveis, a começar para o horizonte econômico de curto e médio prazo — o reflexo nos preços do petróleo, por exemplo.

A questão é se essa seria uma empreitada sábia. O êxito na luta contra o terror não pode e não deve depender apenas da eficácia militar. Será preciso um esforço multilateral, maior do que já se fez, muito mais consistente, para sufocar o financiamento dos grupos terroristas e criar condições efetivas de paz no Oriente Médio.

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