terça-feira, 10 de novembro de 2015

Oliveiros S. Ferreira: A crise não afeta as instituições?

- O Estado de S. Paulo

O eleitor comum pouco atento ao noticiário dos jornais e da televisão terá grande dificuldade em situar-se e, mais ainda, em tentar acompanhar as diferentes explicações que são dadas à crise que se instalou no País. A crise, segundo Fernando Henrique Cardoso, é de legitimidade. Sua solução seria um grande acordo envolvendo a renúncia de Dilma Rousseff. Segundo o comandante do Exército, general Villas Bôas, é uma crise ética.

O comandante disse mais em entrevista publicada no Estado em 2/11: que, quando os problemas sociais se agravam, transformam-se em violência e passam a dizer respeito diretamente ao Exército, que, caso agisse, estaria no seu papel constitucional – a “manutenção da estabilidade para permitir que as instituições cumpram suas funções”. E que, se “as instituições cumprem seu papel” e se “os militares têm o direito de falar”, sobre questões institucionais apenas ele mesmo, o comandante do Exército, poderá manifestar-se.

Acrescentou – e a observação é importante – que o Exército se preocupa com qualquer coisa que eventualmente venha a quebrar a estabilidade. E referiu-se à situação encontrada na Maré e outros locais onde “havia o risco de uma crise social”, obrigando a que meses fossem dedicados a tentar contorná-lo.

Depreende-se do que é dito que a crise é maior e mais profunda – que a crise ética tem raízes sociais, tais como o desemprego e a falta de perspectiva do povo.
Mas é, no mínimo, curioso que as instituições estejam “sólidas e amadurecidas” e cumpram seu papel estando a corrupção “instalada no Brasil”. Como é complicado conceber uma instituição como se praticamente não fosse formada por indivíduos e, ainda assim, cumprisse a função de ordenar os grupos da sociedade.

Há outra observação bastante grave na entrevista do general Villas Bôas, muito embora ele pretenda aparentar tranquilidade na forma como diz da crise: a de que os cortes orçamentários produziram forte impacto no Exército, que tem problemas nas fronteiras e não tem munição. Pior: “a substituição dos 226 mil fuzis FAL, da década de 60, pode demorar 226 anos”, se não mais, “porque atualmente só há recursos para se comprar mil fuzis por ano”.

É, portanto, inquietante registrar essa tranquilidade com que o comandante do Exército possa pretender dizer da crise brasileira, sobretudo quando pensamos na situação das fronteiras e na do Exército, que deve guarnecê-las com equipamento escasso, defasado e sem munição.

O comandante reconhece que o forte impacto produzido pelos cortes orçamentários obriga os militares a falar: “militar tem de falar, pode falar” sobre problemas que estejam em sua esfera de atribuições. Ora, a falta de munição e os dois séculos necessários para que haja a substituição do armamento básico do Exército são problemas institucionais, e é apenas natural que um comandante de unidade, grande ou pequena, fale a respeito do assunto à sua tropa e procure explicar o porquê da situação, certo de que, se não o fizer, correrá o risco de começar a perder sua autoridade. Ao falar, seguramente será levado, tal como foi o comandante do Exército, a referir-se à corrupção. Deixando no ar suas causas...

Se persistir na posição de chamar única e exclusivamente a si o direito de falar sobre problemas institucionais, o general Villas Bôas poderá defrontar-se com uma difícil situação, que tentamos retratar acima – a de a tropa ver-se órfã de orientação e comando. Porque seus comandantes mais próximos não poderão expressar sua opinião sobre as causas da corrupção que se vê instalada, portanto, institucionalizada, e as causas dos problemas que ela provoca inclusive nas Forças Armadas.

Crise de legitimidade, tal como o ex-presidente a definiu, ou, agora, na palavra do comandante do Exército, crise ética, sobre a crise brasileira qualquer cidadão poderá eticamente se manifestar – inclusive qualquer militar, qualquer general, se disposto a correr o risco de perder seu comando ao dizer o óbvio a seus comandados, que seguramente já o perceberam.

Fiquemos, por um instante, no problema dos fuzis FAL. O Exército, no tempo justo, reclamou de sua substituição por armamento menos obsoleto. A questão foi tratada como não prioritária pelos sucessivos ministros da Defesa, chegando-se a este atual resultado, patético, que deve levar os chefes do tráfico e os ministros da Defesa de países amigos a pensar que não será difícil ocupar parte do território brasileiro. Essa hipótese, a de ocupação de parte do território, só poderá parecer descabida aos que estudam as relações do Brasil com o resto do mundo sem atentar para fato que está presente nas fronteiras e sempre foi considerado como um problema – dez outros Estados nacionais.

Tanto o narcotráfico quanto qualquer governo com pretensões expansionistas sabem que, em Miami, poderão armar os grupos que possam não concordar com a política externa e, sobretudo, com a política interna brasileiras. A defasagem de equipamento do Exército, em paralelo às do da Marinha e da Aeronáutica, faz do Brasil apenas uma parte do coro que entoa hinos pacifistas que exaltam as virtudes daqueles que não sabem avaliar, porque não conseguem perceber, a extensão das ameaças reais que a política enseja.

Os que não querem admitir que a crise é do sistema político em que vivemos – e por sistema entenda-se o conjunto das instituições consagradas na Constituição e órgãos criados pela sociedade – recorrem a imagens que servem apenas para mascarar a sua gravidade. E ao observador da cena política ocorrerá considerar algumas hipóteses. Entre elas, a de que, sendo ética a crise, o que poderá estar perturbando a tranquilidade dos comandos é uma pergunta muito simples: até que ponto as instituições militares não foram afetadas e não estão, elas mesmas, em crise?
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Oliveiros s. Ferreira é professor da USP e da PUC-SP

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