sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Para FHC, falta a Dilma um 'comitê de crise'

Por César Felício e Fernando Taquari - Valor Econômico

SÃO PAULO - Uma onda de tensão social em função do aumento do desemprego, na opinião do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, é a principal variável a médio prazo que pode desestabilizar a presidente Dilma Rousseff.

Em 2016, Fernando Henrique não descarta a hipótese da deterioração da economia passar a guiar o cenário político, ao invés do inverso que marcou este ano. Para Fernando Henrique, no momento temas como impeachment e irregularidades como pedaladas fiscais são questões que mobilizam a classe política, mas não as massas.

O ex-presidente tucano condenou a postura da bancada de seu partido na Câmara, que votou majoritariamente pela derrubada do veto presidencial ao reajuste do Judiciário, mas ressaltou que a responsabilidade de se criar governabilidade é do Palácio do Planalto e não da oposição.

Fernando Henrique admite que, se voltasse ao poder, teria mais dificuldades de manter uma maioria no Congresso, em função do aumento da fragmentação partidária. No livro "Diários da Presidência", que publicou recentemente, em que narra os dois primeiros anos de seu governo, o ex-presidente aparece como principal articulador da pauta do Executivo no Legislativo. Fernando Henrique vê a necessidade de se construir maiorias congressuais um dos propósitos principais do documento "uma ponte para o futuro", divulgado pelo PMDB.

Na visão do tucano, o vice-presidente Michel Temer busca estabelecer uma agenda que permita construir uma maioria parlamentar em aliança com a oposição, na hipótese de assumir o poder a curto prazo. Mas FHC ressalta que considerou o programa excessivamente liberal do ponto de vista econômico. O ex-presidente considera que o PMDB procurou demarcar diferenças em relação ao PT e sinalizar para o mercado.

Ao comentar a possibilidade de diálogo com o governo, Fernando Henrique se compara com Dilma, diz que nunca negou a crise econômica que já se desenhava no cenário brasileiro quando disputou a reeleição e que chamou a oposição e a sociedade para conversar, argumentando que não havia vencedores em um colapso econômico.

O ex-presidente desta forma se referiu à crise que marcou o país entre 1998, ano de sua reeleição, e 1999, época em que o câmbio se desvalorizou com força, a inflação subiu, o crescimento da economia diminuiu e sua popularidade jamais voltou a ser a mesma. A diferença essencial em relação ao atual governo, de acordo com FHC, é que Dilma em vez de dialogar com a sociedade e com o sistema partidário, teria optado apenas por nomear um ministro da Fazenda com pensamento oposto ao seu.

A seguir a entrevista exclusiva do ex-presidente ao Valor Pro, serviço de informação em tempo real do Valor, dada na sede do instituto que leva seu nome, no centro de São Paulo.

Valor: Nesta semana o PSDB votou majoritariamente pela derrubada do veto da presidente ao reajuste do Judiciário. O partido não está adotando um estilo de oposição semelhante ao que o senhor sofreu em certo momento?

FHC: Eu não concordo [com o que a bancada fez]. Posso até entender a lógica eleitoral, mas não acho correto diante da responsabilidade que temos com o Brasil. Com a CPMF é diferente. Não devem votar a favor porque o sentimento geral é de que esse imposto não adianta, uma vez que o governo não faz um esforço necessário. Agora, no caso desse veto, votaram por causa da pressão política dos interessados. Não acho que fosse bom derrubar o veto. O PT votou contra o Plano Real, votava contra sempre. Eu não acho que o PSDB deva fazer a mesma coisa. Agora, isso é mais na Câmara do que no Senado. Mas não acho que seja uma atitude negativa sistemática. No caso da DRU, votaram a favor.

Valor: É possível que haja uma crise de confiança em relação ao PSDB?

FHC: A crise de confiança foi dos mercados em relação ao PT, em 2002. Não creio que isto vai se repetir. No caso do PT, anunciaram uma porção de coisas que depois não cumpriram. Por sorte não cumpriram. No caso do PSDB, as pessoas sabem que não é um partido aloprado.

Valor: No livro sobre os primeiros dois anos de seu governo, o senhor faz uma avaliação muito severa do papel do Congresso, sobretudo em 1996. Naquela época, o senhor enxergava um descompasso entre o Legislativo e a sociedade e via o Executivo como um interlocutor mais importante dos movimentos sociais e da sociedade. De que maneira isso evoluiu?

FHC: O Congresso talvez seja hoje até mais representativo da sociedade porque houve uma democratização grande do Brasil. As pessoas que estão no Parlamento, gostemos dela ou não, são mais representativas. Mas você tem hoje uma pulverização partidária muito maior. Os três partidos com maior representação no Congresso, PMDB, PT e PSDB, se você somá-los, não dá 200 parlamentares. E eles não se somam. Eu tive certa dificuldade de organização do Congresso, mas mesmo assim os partidos eram menos numerosos e mais organizados. Consegui criar uma maioria estável, embora percebesse, na época, como ainda instável.

• "Não acho que fosse bom derrubar o veto. O PT votava contra sempre. Não acho que o PSDB deva fazer a mesma coisa"

Valor: Se o senhor tivesse um Congresso fragmentado como o atual ou voltasse à Presidência hoje, a dificuldade de aprovar uma quantidade de reformas que foram feitas seria muito maior?

FHC: Não tenho dúvida. Aprovei várias emendas à Constituição, que demandam 308 votos na Câmara. Hoje, as dificuldades são grandes, mas não só pelo lado do Congresso. Vivemos numa democracia. Você não faz nada sem o Legislativo. Nosso sistema de governo é presidencialista. Agora, esquecemos que na Constituinte a ideia que prevalecia era a do parlamentarismo. O presidencialismo venceu por pressão governamental no limite. O arcabouço da Constituição não é presidencialista. O presidente, para obter maioria, tem que ter uma agenda, e convencer a sociedade dessa agenda.

Valor: A presidente Dilma Rousseff não tem sido capaz disso?

FHC: Nem de ter agenda e muitos menos de convencer a sociedade de que a agenda dela é boa. Então, não é só a fragmentação partidária no Parlamento. O Executivo não está cumprindo suas funções para o regime esdrúxulo como o nosso, que dá muita força ao mesmo tempo ao Congresso e ao presidente. O povo pensa que o presidente tem toda a força. Só que se ele for democrata tem que obedecer a Constituição. Portanto, dependerá do Congresso. Por isso é preciso ter uma agenda que o Legislativo aceite. Sem isso fica difícil funcionar, sobretudo em tempos de vacas magras. Quando a economia funciona a todo vapor, esses problemas não aparecem na sua plenitude. Quando a economia é contra tem que ter a capacidade de entender o processo. Tive momentos de dificuldade na economia, mas nunca perdi a maioria no Congresso. Além disso, procurei manter o diálogo com a sociedade, com o momento sindical, MST, o PT e as oposições. É a compreensão de como se faz o jogo político numa democracia. Quando veio o primeiro período Lula, o vento era a favor.

Valor: Em 2015 vimos que a crise política tracionou a crise econômica. Com o cenário de recessão, o senhor acha que em 2016 isso pode se inverter? Ou seja, que a desarticulação econômica vai bloquear ainda mais o governo no Congresso?

FHC: É possível. Todos os dados até agora são no sentido de que 2016 vai continuar sendo uma ano, do ponto de vista da economia, de crescimento negativo. Portanto, pode aumentar a tensão. Ainda não temos uma tensão social. Temos uma tensão política, uma crise moral e uma recessão econômica. Mas você não viu ainda tensão social. Se isso acontecer vai ser muito complicado.

Valor: Há precedente na história brasileira de um governo desestabilizado por uma tensão social?

FHC: Não sei se já tivemos uma recessão nessa proporção. Em 1930 e 1931 teve algum problema, mas logo em seguida veio a questão da valorização do café e a própria crise [1929] propiciou um desenvolvimento interno aqui. De todo modo não lembro de dois ano de recessão. Há ainda um fator a mais agora, com o aumento do desemprego. No passado, o mais grave era a precariedade do emprego. Você tinha uma massa que nunca tinha sido empregada. Isso foi diminuindo. A economia cresceu, a sociedade se abriu, pessoas entraram para o mercado de trabalho e agora estão saindo.

Valor: Qual são as consequências disso?

FHC: Ninguém sabe avaliar porque nunca houve isso nessa proporção. Há um mal estar maior do que em outras épocas. Vemos greves que se encadeiam, coisa que não tinha há muito tempo.

Valor: As manifestações deste ano de algum modo lembram as que foram feitas contra o senhor em 1999? Na ocasião havia muita gente na rua pedindo o fim do governo, mas não houve uma onda que desestabilizasse o Executivo.

FHC: Não temos maioria clamando por nada. Se você faz em uma pesquisa uma pergunta sobre se o entrevistado quer que o presidente saia, ele vai dizer que quer. Eu acho que é um sentimento mais de distanciamento e de descrença. Muitas vezes na sociedade isto acontece.

Valor: Os partidos falham ao tentar se comunicar com o sentimento popular?

FHC: Estamos tentando, vamos ser justos. Os partidos tentam. Talvez não tenham ainda acertado o tom. A questão é que as preocupações da sociedade muitas vezes não passam pelos temas que interessam aos políticos. passam pelos temas da vida cotidiana, de identidade, de temas novos que apareceram na sociedade e que os partidos não expressam. Eu fui uma vez com meu motorista assistir a um debate. Um debate eleitoral, este último. No fim eu perguntei a ele 'o que você achou?' E ele disse: ' bom, né? falaram lá das coisas deles...' Não é que essas coisas não sejam importantes para o povo, mas o povo não sente da mesma maneira. Por exemplo, o impeachment. É um tema que entusiasma os políticos, positiva ou negativamente. E muitas vezes as pessoas sequer entendem. A pedalada fiscal, claro que é importantíssima. A lei de responsabilidade social, é importantíssima. Mas há uma separação entre a sensibilidade política e a da população. É algo que faz parte das sociedades de massa contemporâneas e no caso nosso faz parte de uma sociedade de educação relativa.

• "Não temos maioria clamando por nada. O sentimento é mais de distanciamento ou descrença"

Valor: Recentemente temos visto este movimento do PMDB para ganhar um certo rosto. Talvez uma iniciativa mais do vice-presidente Michel Temer do que do próprio partido. Talvez seja um sinal efetivo de que o PMDB busca candidatura própria. É possível uma aliança entre PSDB e PMDB?

FHC: Você se refere ao "Ponte para um futuro". É um programa positivo que se aproxima de algumas posições do PSDB. Tem algumas coisas que são liberais demais para o meu gosto. Ele deu uma mensagem, disse alguma coisa. Qual a extensão disse no PMDB vamos ver, porque, como você mesmo disse, é uma coisa mais do Temer do que do partido. Este programa aí foi feito para a hipótese do [Michel] Temer assumir. Para dar um sinal aos mercados. E uma abertura para se ter maioria no Congresso em um eventual governo, porque tem isso também. É bom lembrar que este programa foi feito há dois meses, quando o cenário era outro. Quanto a uma aliança eleitoral, isto está muito longe, é só em 2018. Agora, ganhe quem ganhar, para governar, vai ter que fazer alianças, isto é óbvio. No Brasil ninguém se elege com maioria absoluta no Congresso. O PMDB sabe disso, é inevitável nestes sistemas.

Valor: Que pontos do documento pemedebista são muito liberais para o seu gosto?

FHC: Na questão de desvincular a Previdência do salário mínimo. Muito bem isso, mas tem que ter um parâmetro. O aposentado fica assustado e pensa; 'eu não vou ganhar? e com esta inflação, não sei o que?'; Tem que discutir isso com mais detalhes. Por isso eu acho que este programa é mais um sinal do que um caminho institucional. Entendo que o PMDB quis corrigir a ingerência pública na vida privada. Mandou um sinal de que vão respeitar mais o setor privado e esta é uma posição do PSDB. O PMDB está dizendo; 'olha aqui, eu não vou ser como o PT'. Estão dizendo explicitamente, do ponto de vista de orientação política, que discordam do PT.

Valor: Existe a possibilidade de um diálogo mais institucional entre o governo e a oposição, passando pela figura do senhor e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?

FHC: A questão de dar governabilidade é de todos, mas especificamente cabe ao presidente, não à oposição. Mantiveram durante anos o discurso da herança maldita, tentando me desconstituir. Eu não agi assim. Quando houve a crise da energia elétrica em 2001, eu chamei todo mundo, chamei a sociedade civil, expus toda a situação. Criei um comitê de crise. O governo sabia no ano passado qual era a situação econômica, melhor do que nós. Em vez de enfrentar, disseram que não vinha crise alguma. Ela [a presidente Dilma Rousseff] organizou o governo como se não houvesse crise.

Valor: Mas a lógica eleitoral não impede um governo de agir dessa forma? Em 2014 Dilma buscou a reeleição e em 1998 foi o ano que o senhor também buscou o segundo mandato, em meio de uma crise financeira internacional que atingiu o Brasil e o seu governo.

FHC: É o que é que eu fiz em 1998?

Valor: O senhor não tratou da crise no debate eleitoral.

FHC: Não, pelo contrário, eu disse sim que ia haver a crise. E disse mais, que ia chamar o FMI, em um discurso que fiz no Itamaraty. E durante a campanha, a estratégia era afirmar; 'olha, tem crise, mas quem acabou com a inflação vai acabar com a crise'. E o que é que eu fiz em seguida à reeleição? chamei o Lula. O Lula mandou um sinal, eu peguei o sinal e chamei o Lula para conversar. E disse a ele: 'olha, a crise está aí, mas vocês estão errados se acham que a crise vai levar a uma mudança da sociedade, ao socialismo, não sei o quê. A crise passa e é ruim para todos, não é que depois da crise vem uma maravilha. Vamos ter quer trabalhar'. Não neguei a crise e nem me neguei a conversar com o PT. Falam em fraude eleitoral, mas eu falei de crise o tempo todo. Ainda no mês de setembro de 1998 anunciei que a situação iria piorar. Eu não vi isso agora, mesmo depois da campanha. Ela não chamou a sociedade para uma coesão, o que fez foi nomear um ministro da Fazenda que pensa o oposto dela. Não se sai deste buraco sem coesão. Quem está no governo tem a responsabilidade de encontrar o caminho para isso. Mas continuam não fazendo.

Valor: Qual a posição do senhor sobre o fim das doações empresariais para campanhas eleitorais? Em seu livro-depoimento dos dois primeiros anos de seu governo, o senhor cita que foi insistentemente procurado por dirigentes partidários do governo e da oposição para intermediar contatos com possíveis doadores.

FHC: Isso era uma coisa natural. Nunca tive problema com isso, por uma razão simples. Todas as doações que recebi quando candidato foram devidamente registradas. A resistência sempre foi de alguns partidos que não queriam mostrar o que tinham recebido. Quando fui eleito já havia a preocupação legal de se evitar o caixa dois. Eu acho esta restrição de agora positiva. Ninguém está doando nada, está todo mundo tirando do governo. É a falsa doação. Faz de conta que é privado e faz de conta que está dando ao partido. A legislação tem que ser muito restritiva, aberta talvez para doações de conglomerados empresariais com um limite. E ao mesmo tempo tem que haver regras para proibir a marquetagem, diminuir o custo da campanha. Isso porque sou muito cético em relação a fazer tudo com recursos públicos.

Valor: A eleição à Prefeitura de São Paulo em 1992 foi a última em que o candidato do PSDB não foi Serra ou Alckmin. No governo de São Paulo e nos demais estados vemos um cenário parecido. No Rio, por exemplo, o partido se acostumou a ser coadjuvante. Faltou ao PSDB criar novas lideranças? Aliás, por que não há novas lideranças no partido?

FHC: Isso acontece no mundo todo. É muito difícil a renovação de quadros em uma sociedade de massa. Mesmo nos Estados Unidos. Até que houve alguma renovação. O Aécio é novo. A Marina é nova. Outros partidos também dificuldade. Pega o PMDB. Quem? Não é porque não queira. Não é fácil emergir. Se você for ver os prefeitos, tem vários bons. Diria que tem mais de uma centena de bons prefeitos. Disso a ser um nome nacional é uma enorme dificuldade. Subconsciente a mídia também seleciona quem é que fala. Fala quem sabe falar. Saber falar não quer dizer falar bem. É comunicar. Não é tanta gente assim. A emersão de um líder novo não é só papel do partido. É da sociedade e os meios de comunicação estão no meio disso. E tem pessoas que são capazes, boas, mas são capazes de comunicar. E uma sociedade como a nossa é como o Chacrinha dizia: Quem não comunica se estrumbica. São problemas sociológicos.

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