sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Luiz Sérgio Henriques: Chico Buarque de Holanda e a nossa canção do exílio

Chico Buarque de Holanda é um artista fundamental do Brasil contemporâneo. Um compositor talentoso, na trilha aberta por Tom Jobim, o maestro soberano; um poeta/letrista múltiplo, conectado à tradição de Noel e Geraldo Pereira, bem como à arte moderna “alta”, a mostrar, assim, que vivemos num tempo de misturas e contaminações, em que popular e erudito se cruzam, se fertilizam e se enriquecem. Villa-Lobos que o diga. E o programa moderno consistia, no fundo, em distribuir biscoito fino para as massas.

Chico Buarque é, também, um homem de esquerda, alguém que quase involuntariamente associamos a ícones como Niemeyer ou Saramago — cujo generoso impulso igualitário se misturou, até por razões geracionais, a arcaicas concepções stalinistas. Durante o regime militar, Chico foi referência. Não só suas metáforas políticas nos ajudavam a “ir levando”, como também seu talento dramático e sua cabeça dialógica nos ensinavam a compreender o cotidiano dos pedros pedreiros, a agonia de quem despencava dos andaimes, o pudor das moças carolinas e januárias que nós, marmanjos, não nos cansávamos de esperar que aparecessem em alguma inalcançável janela. Para não falar das paixões de verdade, lancinantes, agora conjugadas no feminino.

Chico é de esquerda e é petista. É amigo de Lula. Seu pai, um notável estudioso do nosso país, veio de outra geração, mas ainda a tempo de estar entre os fundadores do PT, certamente com outras expectativas e outros horizontes. Ser petista, ou ter qualquer outra filiação, ou não ter nenhuma, é direito insofismável de cada indivíduo na nova democracia brasileira. Nós, por exemplo, desta página Esquerda democrática (e muitos colaboradores de Gramsci e o Brasil) não somos petistas nem nos inscrevemos entre os admiradores incondicionais de Luiz Inácio Lula da Silva. Permitimo-nos até ter sérias cautelas, ainda que estas cautelas se expressem de modo variado. Mesmo entre nós, a democracia tem muitas vozes, uma infinidade de vozes, e justamente por isso a queremos tanto.

Chico, homem publicamente reservado, raramente se expressa em termos diretamente políticos. Aliás, como artista, não lhe pedimos e muito menos exigimos que se expresse nesses termos. Quando o fez, como na última campanha, pareceu-nos agir de modo um tanto... simplista. Tão sofisticado na arte, Chico mostra-se previsível politicamente. Em 2014, avalizou o mito Dilma, quer na condição de gerente invulgar (óbvia criação marqueteira), quer na dimensão ainda mais profunda de “coração valente”, que remete à luta armada contra a ditadura. Ambas as dimensões podem ser contestadas racionalmente do ponto de vista da esquerda. De uma outra esquerda, naturalmente. E isso não tem nada demais nem precisa ser manifestado aos gritos ou aos tapas, no “melhor” estilo da boçalidade que não escolhe lado político para se fazer notar.

Um episódio da vida cultural sob a ditadura, com dimensão de massa: Festival Internacional da Canção, Maracanãzinho, 1968. Tempo de exaltação muitas vezes insensata, uma parcela da classe média radicalizada apoiava a luta armada contra o regime, constituía o caldo de cultura que favorecia este tipo de ação. Pretendia “fazer a hora”, sem “esperar acontecer”. Tom e Chico, Cynara e Cybele sobem ao palco, muito mais sob vaias do que sob aplausos, para cantar a suave “Sabiá”. Música e letra belíssimas, que se encadeiam imediatamente à dolente “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, tantas vezes glosada na nossa literatura (Oswald de Andrade e Cacaso, entre muitos outros, reescreveram o “poema do lá”). Na canção, sob o lirismo pungente da “palmeira que já não há” e da “flor que já não dá”, a ideia forte dos que definham no exílio, longe da pátria — em qualquer exílio de qualquer pátria, pois, pedimos licença para lembrar, ditaduras de esquerda também exilaram seus oponentes, assim como as ferozes ditaduras latino-americanas da segunda metade do século passado.

Prestamos a Chico Buarque a homenagem da nossa divergência na avaliação de muitas situações em que, a nosso juízo, esquerda e liberdade não se conjugam nem rimam. Não gostamos de nenhuma situação em que uma só voz se sobreponha à mencionada pluralidade de vozes ou monopolize o espaço público, mesmo que imagine falar em nome da justiça social. Com Chico Buarque, lamentamos que este seja o país da delicadeza perdida, ainda que por certo atribuamos diferente peso específico aos atores que contribuíram para estropiar a delicadeza e dilapidar o espaço público. Mas contamos com Chico — com as canções e os romances de Chico — para nos refinarmos espiritualmente e, quem sabe, nos regenerarmos coletivamente, ressalvada para sempre a bem-vinda diversidade.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.

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