sábado, 30 de janeiro de 2016

Rosiska Darcy de Oliveira: O silêncio do carnaval

• Blocos saem às ruas ostentando alegria que não rima com sofrimento que a incerteza presente e futura está trazendo

- O Globo

Nesta época do ano costumo escrever sobre o carnaval, que é muito mais do que uma paixão que me vem do fundo da infância. É um patrimônio inestimável do povo brasileiro que atrai a nossos pífios aeroportos louros que querem ser mulatos, ricos que mitificam a pobreza, gente em busca de uma vida perdida em outra encarnação e que só reencarna nesse clima mágico em que tudo é permitido.

Quanto a nós, que crescemos neste país de loucos, passamos o ano chorando o luto por esperanças frustradas e, de repente, quando rompe fevereiro, mudamos de assunto. Um demônio ancestral, solto nas ruas, arrasta multidões, enfeita e enfeitiça a avenida.

É graça dada aos carnavalescos acreditar na fantasia, incorporar um personagem qualquer como uma dimensão real de sua vida. É graça dada a eles a pele colorida dos arlequins que, vestida na infância, cola na alma e resiste à banalidade dos dias, espargindo purpurina sobre nossas vidas.

Este ano, no entanto, há algo de diferente no ar. É carnaval, e os blocos saem às ruas ostentando uma alegria que não rima com o sofrimento que a incerteza presente e futura está trazendo aos brasileiros. Essa alegria é tingida de amargor. Talvez porque seja carnaval me vem à memória um verso de Menotti Del Picchia em seu poema “Máscaras” que, falando de pierrôs, colombinas e arlequins, define à perfeição o trágico da incerteza: “A incerteza que esvoaça desgraça muito mais do que a própria desgraça.”

Trata-se de um pierrô apaixonado em dúvida sobre o amor da volúvel colombina. Quer a verdade, por pior que seja, porque a incerteza guarda junto com o temor do desenlace um resto de esperança e o medo de que ela seja logo desmentida. Se as incertezas que pesam sobre nós são bem mais dramáticas, nem por isso o verso perde a pertinência. As certezas, por amargas que sejam, provocam um choque de realidade, reordenam prioridades, exigem providências, redefinem o que é de fato importante na vida de cada um. A incerteza é paralisante, engana e maltrata. Instalou- se em nossas vidas como uma hóspede inesperada que acorda conosco e que, ao que tudo indica, veio para ficar.

Os brasileiros vivem aflitos desde que uma enxurrada de lama e mentira varreu o país. Não sabemos a extensão do desastre que um mau governo possa ter causado à nação. Ficou a neblina. Cresce o medo do desemprego que já atinge nove milhões de pessoas. Aumenta o custo de vida que transborda de salários congelados. Vive-se agora sem saber se, sim ou não, haverá emprego e salário no fim do mês, e a aposentadoria contratada para o fim da vida. Quem trabalhou honestamente e nada tem a ver com os desmandos de quadrilhas várias vive essas ameaças com uma revolta surda.

A moeda pode se esfarelar? Quem sabe... A sangria que roubalheira e incompetência fizeram na economia e a subtração dos recursos que pagam escolas, universidades, saúde, saneamento e segurança já são, em si, desoladoras.

Movemo-nos em um cenário de ruínas. Os hospitais do Rio fecham no momento em que chega a epidemia de zika. Piora o fantasma da doença quando o socorro é improvável. A evidência de que o montante da rapina supera de muito o que foi gasto nas bolsas família acrescenta ao butim a esperança roubada dos eleitores. O descalabro é evidente, assim como o desgoverno.

E, no entanto, viver é preciso, e vivemos, numa estranha normalidade. Os ruídos do carnaval encobrem um silêncio assustador que não está sendo ouvido. Esse silêncio pode ser um grito surdo, pode conter um potencial explosivo. Talvez algum ouvido mais atento esteja ouvindo os barulhos do futuro. Quem sabe quem ou o que se esconde nesse poço de decepção e mágoa, nesse silencio?

Há quem explique a aparente inércia da sociedade pela ausência de lideranças. E se a ideia mesma de liderança, como encarnação das esperanças em um fulano qualquer, estiver agonizando, desmoralizada como os velhos condottieri?

O tempo passa e, enquanto nos desgovernam, há uma vida para viver, de vez em quando brincando carnaval, já que algum prazer é preciso. Mas o carnaval vai passar. O ano vai recomeçar. As previsões para a economia são as mais sombrias. Para a política, esse buraco negro, sequer há previsões. O que chamamos de crise é esse feixe de incertezas sobre o que vai acontecer no Brasil e na vida de cada um. Há uma só certeza: ou estas perguntas encontram resposta ou a crise, se tornará, ela mesma, incontrolável.

O carnaval é uma gigantesca máscara que encobre o rosto desta nação alegre, colorida de paetês verdes e amarelos. O rosto trágico do Brasil.

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Rosiska Darcy de Oliveira é escritora

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