sábado, 16 de janeiro de 2016

Zuenir Ventura: Pasárgada não há mais

• Minha devoção por Bandeira é especial não só por considerá-lo um dos maiores poetas em língua portuguesa, como pelo privilégio de tê-lo tido como professor

- O Globo

Quando as coisas apertam por aqui, há sempre um leitor de Manuel Bandeira para recitar “Vou-me embora pra Pasárgada”, aquele lugar mítico, paradisíaco, onde o poeta, infeliz, sonhava em se refugiar, e que, com essa viagem onírica, compôs um dos mais populares e bonitos poemas de evasão. Lá, faria tudo a que um tuberculoso crônico como ele não tinha direito: andaria de bicicleta, montaria em burro brabo, faria ginástica, subiria em pau de sebo. “E quando eu estiver mais triste/ Mas triste de não ter jeito/ Quando de noite me der/ Vontade de me matar/ — Lá sou amigo do rei —/ Terei a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei”. Minha devoção por Manuel Bandeira é especial não só por considerá-lo um dos maiores poetas em língua portuguesa, como por eu ostentar o honroso privilégio de tê-lo tido como professor de Literatura Hispano-Americana no curso de Letras Neolatinas da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, da ex-Universidade do Brasil.

Uma tarde, ele convidou um pequeno grupo de alunos para ir até o seu apartamento em frente à faculdade, na Avenida Presidente Antônio Carlos, próximo ao Aeroporto Santos Dumont, uma zona que então, lá pelos anos 50, era parcialmente residencial. A conversa foi inesquecível. Ele falou de tudo durante umas duas horas, inclusive que esse foi o poema que mais tempo lhe tomou para compor. Ou melhor, para não compor: “Não construí o poema; ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente, utilizando as reminiscências da infância”, contou-nos o que escreveu depois. Bandeira tinha 15 anos quando durante uma aula ouviu ou leu pela primeira vez a palavra mágica: Pasárgada. Vinte anos depois, em meio a uma crise de desânimo, surgiu-lhe na cabeça o verso “Vou-me embora pra Pasárgada”. Ele pegou lápis e papel, preparou-se, mas a inspiração não veio. A obra-prima só viria a acontecer, de um estalo, cinco anos depois.

Como não havia Google, demorei muito para descobrir que Pasárgada era uma cidadezinha nas montanhas do sul da Pérsia, fundada pelo rei Ciro. E que a Pérsia ficava onde é hoje o Irã, um país que preocupa o Ocidente. Agora mesmo, aumentaram perigosamente suas tensões com a Arábia Saudita. Por isso, quando vi na internet um brasileiro desiludido achando que a solução era ir embora pra Pasárgada, idealizando tudo o que o poema promete, tive vontade de lhe dizer que aquela não é mais a melhor região para se andar de bicicleta. Ele poderia alegar, com razão, que na Cidade Maravilhosa também é perigoso. A triste realidade é que não há mais Pasárgada no mundo de hoje.

Ainda bem que o poeta está andando de bicicleta bem longe daqui.

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