terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Criador da sigla espanhola Podemos teme retrocesso na América Latina

• À Folha Juan Carlos Monedero diz que esquerda da região falharam ao transformar ex-pobres em consumidores e não em cidadãos

Eleonora de Lucena – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Colapso econômico, mudanças radicais no sistema político, escalada bélica, grande desemprego: tudo isso aconteceu nos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, no início do século passado. Tudo isso ocorre hoje, e as semelhanças das situações são inquietantes.

O alerta é do cientista político Juan Carlos Monedero, 53, um dos criadores do Podemos, o novo partido espanhol surgido em 2014, na esteira dos protestos contra a austeridade, e que se tornou a terceira força política no país nas eleições de dezembro passado.

Para ele, a "única varinha mágica" para sair da crise é gerar emprego –o contrário do que governos estão fazendo. E ataca: "O terrorismo financeiro, apesar de vestir terno e gravata, é tão perigoso quanto foi o nazismo nos anos 30 do século passado", declara em entrevista à Folha.

Professor da Universidade Complutense de Madri, Monedero teme uma regressão política na América Latina. "Na Argentina, a metade do país não vai permitir que [Mauricio] Macri acabe com os avanços sociais dos últimos anos. Alguns, especialmente os EUA, não teriam problema em converter a América Latina em uma guerra civil permanente, como na Líbia, na Síria ou no Iraque. Confio que os governantes da esquerda estejam conscientes desse risco", diz.

Ex-assessor de Hugo Chávez, ele afirma esperar que "a politização evite essa regressão". Na sua análise, as esquerdas latino-americanas cometeram os mesmos erros que as europeias: atacaram a pobreza, mas não conseguiram engajar os cidadãos, que se tornaram apenas proprietários e consumidores.

Autor de "La Rebelión de los Indignados" (2011) e de "Que no nos Representan!" (2011, com Pablo Iglesias, o líder do Podemos), Monedero foi integrante da executiva do partido. Avalia que as últimas eleições espanholas enterraram o bipartidarismo no país.

Nesta entrevista, ele fala dos pontos em discussão em curso para a formação de um governo de coalizão com o tradicional PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol): freios a privatizações, a demissões e ao TTIP, tratado que liberaliza negócios.

Folha - Como o sr. explica o avanço eleitoral do Podemos?

Juan Carlos Monedero - Numa campanha eleitoral, é mais difícil esconder a mensagem; as estratégias de ocultamento funcionam pior. Podemos, como um partido emergente, tem recebido muitas críticas de praticamente todo o espectro político, o que o havia enfraquecido. Nas eleições, ele pode contar quem é.

A eleição de dezembro significou o fim do bipartidarismo na Espanha?

Sem dúvida. Em comparação com outros momentos, quando [PP e PSOE] chegaram a ocupar mais de 80% dos assentos, hoje os dois principais partidos não podem formar um governo juntos. Além disso, as decomposições do PP, pela corrupção, e do PSOE, por sua falta de rumo, atestam que o problema do bipartidarismo é estrutural.

Só erros profundos do Podemos poderiam dar alento ao bipartidarismo. Mas não parece que essa possibilidade esteja no horizonte. As coisas têm sido bem-feitas até agora e não há razão para enganos no futuro próximo.

Quais são as prioridades do partido se chegar ao poder em coalizão com o PSOE?

Foi apresentada a Lei 25, em referência ao artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Trata-se de garantir soluções a pessoas em situação de urgência econômica.
Ela propõe medidas contra a pobreza energética –luz, gás–, estabelece alternativa habitacional a vítimas de abusos, evita despejos para quem não tem onde morar e acaba com o co-pagamento farmacêutico.

Na proposta de governo em coalizão com o PSOE, o Podemos reivindica a defesa da justiça social, freio a cortes de pessoal e a privatizações, além da revogação das reformas trabalhistas do PP e do PSOE. Em relação aos meios de comunicação, se deveria trabalhar por uma RTVE [mídia estatal] independente, com profissionais independentes. Na educação, saúde e serviços sociais, trata-se de garantir os direitos sociais e reverter as privatizações.

É relevante resolver o problema territorial, assumindo a plurinacionalidade da Espanha. Com a vitória da coalizão Em Comú Podem, na Catalunha, se reivindica que um membro dessa coalizão (Xavi Domenech) seja ministro da Plurinacionalidade. Na defesa, se trata de obter um sistema integral de defesa comum, à margem dos lobbies de armas, e que trabalhe para uma defesa europeia que irá substituir a Otan.

Na Europa, temos que travar o TTIP [sigla em inglês para Transatlantic Trade and Investiment Partnership, tratado comercial e de investimentos, em debate, que reduz barreiras e regulações para os negócios] e fomentar a cooperação para o desenvolvimento, ajudando a reverter a ideia de uma "Europa fortaleza", não solidária e distante dos direitos humanos.

Na Espanha, o pior da crise já passou?

As perspectivas são melhores do que na França ou na Itália, mas muitos indicadores apontam que virá um ano problemático em todo o mundo.

O que deve ser feito para a retomada do crescimento?

A única varinha mágica é o emprego. É a única forma de aumentar o consumo, a produção, a atividade econômica, os rendimentos, além de provocar redução no resultado da equação entre gasto público menos gasto em desemprego. É o contrário do que se está fazendo agora.

Quais são os impactos da crise migratória, econômica e dos ataques terroristas para a Europa?

São desafios que exigem política europeias que busquem a raiz dos problemas. As migrações podem ser muito benéficas. A crise deve ser resolvida com o aumento da integração europeia. Ataques terroristas se enfrentam com inteligência e ajudas econômicas –não lançando bombas ou demonizando, ações que só ajudam a aumentar o ódio e as fileiras dos extremistas.

É possível comparar a situação atual com os primeiros anos do século 20 que antecederam a Primeira Guerra Mundial?

Há contornos parecidos inquietantes: colapso econômico, mudanças radicais no sistema político, escalada bélica, grande desemprego. Como disse Antonio Gramsci (1891-1937) naqueles anos, ao pessimismo do intelecto se deve opor o otimismo da vontade. Insisto: devemos ver essas condições como desafios para evitar a paralisia.

Na América Latina, que o sr. conhece bem, a esquerda sofreu derrotas na Argentina e na Venezuela. Como o sr. explica esses reveses? Onde a esquerda errou? Há avanço da direita no continente? O que deve ser feito?

Como resumiu Boaventura de Sousa Santos: reformas constitucionais reais e mudança na hegemonia. Esclareço com dois pontos. Primeiro: a América Latina tem cometido o mesmo erro que a esquerda europeia –tirou a maioria da pobreza, mas não a converteu em cidadãos comprometidos, senão em proprietários e consumidores que acabaram voltando a votar em seus carrascos.

Segundo: a conivência com as velhas formas invariavelmente tem levado ao problema da corrupção às novas formações políticas. A vacina da participação popular não foi implementada. E isso dá à direita revanchista chance de tentar legitimar a sua ideia de que o poder lhe pertence por nascimento.

O Brasil vive uma crise política e uma recessão econômica. Qual sua avaliação do país e o que deveria ser feito?

Não sou eu quem vai dizer o que o governo de Dilma Rousseff deve fazer. Mas é terrível pensar que depois de uma década seja possível regressar ao passado sem nenhum conflito. Confio que a politização evite essa regressão.

Estamos vendo que na Argentina a metade do país não vai permitir que [Mauricio] Macri acabe com os avanços sociais dos últimos anos. Alguns, especialmente os EUA, não teriam problema em converter a América Latina em uma guerra civil permanente, como na Líbia, na Síria ou no Iraque. Confio que os governantes da esquerda estejam conscientes desse risco.

Petróleo e China estão no centro das atenções mundiais. Como o sr. analisa essas situações?

A geopolítica está golpeando a economia. A morte de [Hugo] Chávez e o assassinato de [Muammar] Gadaffi foram também a morte da Opep. A Arábia Saudita se aproveita disso para debilitar o Irã e arruinar as empresas de fracking [de exploração de xisto]. Mas isso está afetando a economia mundial.

A demanda menor da China termina por fazer o resto. Enquanto isso, recente informe da Oxfam afirma que 62 pessoas têm tanto dinheiro como 3,6 bilhões de seres humanos. As desigualdades são um fator terrível de desestabilização econômica.

E enquanto meia centena de pessoas tiver tanto dinheiro quanto metade da humanidade não haverá solução para os problemas do mundo.

O terrorismo financeiro, apesar de vestir terno e gravata, é tão perigoso quanto foi o nazismo nos anos 30 do século passado.

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