sábado, 6 de agosto de 2016

Anos loucos - Míriam Leitão

- O Globo

Tudo aconteceu desde aquele dia em que o Rio ganhou a disputa com Tóquio, Chicago e Madri para ser a sede da Olimpíada de 2016. Poucas vezes na história houve uma reversão tão forte quanto a que vivemos em todas as áreas e sentidos. Por isso, chegar até aqui e fazer a festa é uma conquista ainda maior. O país teve que remar contra forte correnteza e superar desafios de dimensões olímpicas.

Enquanto preparava a Olimpíada, o Brasil teve em 2010 a maior taxa de crescimento do PIB em 25 anos, e teve, no ano passado, a maior queda em 25 anos. Somados os dois últimos anos, o Brasil está vivendo a pior recessão desde que o PIB é calculado. Na área política, houve uma reviravolta completa. O popular presidente da época da escolha do Rio como sede é investigado e réu em processos anticorrupção.

No dia 4 de dezembro do ano passado, o presidente do Comitê Olímpico, Thomas Bach, ligou para o prefeito Eduardo Paes e perguntou: “o que está acontecendo com Lula?” O prefeito, apesar do bom domínio que tem do idioma, ficou enrolado para falar “condução coercitiva” em inglês. Bach tomou vários sustos, por isso disse que não quer repetir a experiência. Foi demais para seu espírito germânico.

A Operação Lava-Jato elevou a tensão em todas as áreas e mudou o cenário político e corporativo do país. Das empreiteiras que ganharam a Parceria Público Privada para fazer o Parque Olímpico — Odebrecht, Andrade Gutierrez e Carvalho Hosken — duas tiveram seus presidentes presos no dia 19 de junho do ano passado. Marcelo Odebrecht permanece preso e já foi condenado em um dos processos.

A crise política foi se agravando na preparação final da Olimpíada, com o afastamento da presidente Dilma. Assim, os Jogos começaram em um governo provisório e com o julgamento da presidente chegando à sua reta final. As primeiras páginas dos jornais de ontem traziam duas notícias: a abertura da Olimpíada com 40 chefes de Estado no Rio e a aprovação do relatório que pede o impeachment da presidente afastada. Tudo tem sido ao mesmo tempo, no Brasil, desde aquele dois de outubro de 2009, em que o Brasil teve a vitória final na disputa pela Olimpíada de 2016. Um dos argumentos, principalmente na briga com as cidades de economias desenvolvidas, foi o que faltava fazer. O Comitê gosta de deixar legados. Em Chicago e Tóquio, havia pouco a fazer; no Rio, muito. O problema agora é lidar com as esperanças frustradas.

O país desmoronou do ponto de vista fiscal. Déficits crescentes assombram as contas federais e aceleram o crescimento da dívida pública, e o estado onde ocorrem os Jogos decretou calamidade fiscal. A falta de dinheiro não decorre da preparação da Olimpíada, mas tornou ainda mais difícil prepara-la. O governo estadual entregou uma linha de metrô pela qual se esperava há décadas, mas não entregou a sonhada limpeza da Baía de Guanabara.

Esse é um sonho tão antigo que parece eterno. E permanecerá arquivado. Em meados de 1800, a jornalista francesa Adèle Touissant-Samson veio ao Brasil e aqui viveu dez anos. Em seu livro-reportagem “Uma parisiense no Brasil”, contou que no desembarque no Rio ficou encantada com a beleza e chocada com a sujeira da Baía. Pois é, ainda damos essa mesma impressão mista aos visitantes.

Houve também na preparação da Olimpíada surto de doenças terríveis provocadas por um mosquito. E desta vez o desdobramento não podia ser mais trágico, porque a sequela é a atrofia do cérebro de crianças não nascidas. Como as crises se somaram, o combate à doença tentava ser feito enquanto o governo estava em crise fiscal e política.

Uma Olimpíada é sempre difícil de fazer. Há milhões de detalhes para que tudo esteja dentro do que exige o COI. Um pequeno exemplo: a temperatura da água da piscina onde os nadadores disputarão suas provas tem que estar sempre em 28 graus. Nada a mais, nada a menos. Se é sempre uma árdua tarefa, uma luta contra o tempo, um teste para a capacidade de planejamento e execução, imagina o que foi preparar uma olimpíada no meio de redemoinhos político, econômico, fiscal, policial? Mas aqui chegamos, a festa começou, resta torcer pelos enviados do Olimpo que estão entre nós.

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