sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Díade: encrenca conceitual - Gilvan Cavalcanti de Melo*

Há muitos anos, sempre procurei e continuo a recusar a entender a política e outras atividades sociais com o viés instrumental das ciências físicas. Fiquei bastante alegre quando li o artigo do cientista político Bolívar Lamounier, publicado em O Estado de S. Paulo (15/10/1016), “Hora de rever conceitos”. Contrariado com os esquemas utilizados nas análises dos fenômenos políticos do Brasil atual, descreve-os assim: “Os efeitos produzidos pela avalanche de corrupção desvendada pela Lava Jato [...] certamente levarão os pesquisadores políticos acadêmicos e os jornalistas de um modo geral a repensar os esquemas que utilizam em suas análises. Embora não os veja como um grupo homogêneo, creio que a maioria observa a cena pública brasileira por um prisma ideológico, esforçando-se para enquadrar a variedade das questões e dos agentes políticos na dicotomia direita x esquerda”.

O que o autor propõe? “Embora sucintas, as citações acima devem ser suficientes para evidenciar o arcaísmo dessa estrutura conceitual e as distinções arbitrárias a que ela conduz. Contudo, o ponto que desejo frisar é a urgente revisão de tal esquema à luz dos acontecimentos recentes”. Como revisá-lo? Primeiro: há algo em comum nos grupos heterogêneos — uma visão de mundo classificatória e dualista, própria das ciências naturais.

Max Weber (1864-1920), em Conceitos sociológicos fundamentais, por exemplo, em um trecho chega a descrever seu método assim: “Mas a sociologia procura também apreender, mediante conceitos teóricos e adequados por seu sentido, fenômenos irracionais (místicos, proféticos, pneumáticos e afetivos). Em todos os casos, seja nos racionais ou irracionais, a sociologia se afasta da realidade e contribui para o conhecimento desta mesma realidade na medida em que, mediante a indicação do grau de aproximação de um fenômeno histórico de um ou vários destes conceitos, esta realidade se pode ordenar. O mesmo fenômeno histórico pode especificar-se, por exemplo, numa parte de seus componentes, como ‘feudal’, noutra como ‘patrimonial’, noutra ainda como ‘burocrático’ e, de novo, noutra como ‘carismático’. [...] a sociologia deve formar, por sua parte, tipos ‘puros’ (‘ideais’) destas estruturas que mostram em si a unidade mais consequente de uma adequação de sentido a mais plena possível, sendo por isso mesmo pouco frequente na própria realidade”.

No livro Teoria geral da política – a filosofia política e as lições dos clássicos de Norberto Bobbio (1909-2004), seu amigo e aluno Michelangelo Bovero, autor da introdução, escreve com muita clareza: “A grande dicotomia entre ‘ideias’ e ‘rude matéria’ dá forma eficaz e confere um sentido dramático à convicção, radicada no pensamento de Bobbio, de que o mundo humano como universo histórico possui uma natureza objetivamente dualística. Como já mencionei, Bobbio reconhece ser ele ‘um dualista impenitente’. Mas o dualismo de Bobbio, além do aspecto metodológico e gnosiológico, [...] assume também um aspecto por assim dizer, substancial”.

O próprio Bobbio não deixa nenhuma dúvida sobre seu “tratamento por antíteses” em suas análises na mesma obra Teoria geral da política. Em resumo diz: “Pode-se falar corretamente de uma grande dicotomia quando nos encontramos diante de uma distinção da qual é possível demonstrar a capacidade: a) de dividir um universo em duas esferas, conjuntamente exaustivas, no sentido de que todos os entes daquele universo nela têm lugar, sem nenhuma exclusão, e reciprocamente exclusivas, no sentido de que um ente compreendido na primeira não pode ser contemporaneamente compreendido na segunda; b) de estabelecer uma divisão que é ao mesmo tempo total, enquanto todos os entes aos quais atualmente e potencialmente disciplina se refere devem nela ter lugar, e principal, enquanto tende a fazer convergir em sua direção outra dicotomias que se tornam em relação a ela, secundárias”.

No conhecido livro Direita e esquerda, Bobbio deixa clara sua opção ao fazer um comentário de um ensaio de outro conterrâneo: “O autor distingue três ‘invariantes morfológicas’ que identificariam a esquerda: a) uma especifica teoria dualista da sociedade; b) uma especifica teoria do (estar em) crédito com a sociedade ; c) uma teoria política igualitária”.

Partindo da teoria da grande dicotomia, Bobbio estabeleceu outra entre “fatos e “valores”, subdividida em “democracia ideal e democracia real”, “céu dos princípios e terra onde se encontram os corpóreos interesses”, “mundo do pensamento e mundo da ação concreta”, “vocação da utopia e profissão do realismo”. Além da mais conhecido de todas na política: “direita e esquerda”. Outras disjuntivas foram surgindo, como as clivagens entre “baixo” e “cima”, “povo” e “casta”, “velha política” e “nova política”.

É obvio que essa metodologia não se iniciou com os dois autores mencionados. O sociólogo José de Souza Martins, em seu livro Do PT das lutas sociais ao PT do poder, lembra bem os antecedentes religiosos da díade entre “bem” e “mal”, a matriz de todas elas. René Descartes (1596-1650) com a teoria matemática estabeleceu o método da divisão dos fenômenos ou fatos em partes. Thomas Hobbes (1588-1679) seguiu na mesma direção: a divisão dos corpos ou fenômenos em partes. Carl Schmitt (1888-1955), nos idos de 1930, na Alemanha, usou os conceitos de “amigo” e “inimigo” na política. Nos anos 1950 apareceram dois livros que se transformaram em uma espécie de bíblia da dicotomia. O primeiro, Os dois Brasis, de Jacques Lambert (1891-1948), opunha o Brasil desenvolvido e o Brasil subdesenvolvido. O segundo, Geografia da fome, de Josué de Castro (1908-1973), dividia o Brasil em duas partes: os que tinham fome e os que tinham medo dos que tinham fome.

De uns tempos para cá alguns acontecimentos sacudiram o ambiente político: as gigantescas manifestações de junho de 2013, ocorridas em todo o País; as manifestações que pediram o afastamento da presidente Dilma Rousseff e que resultaram na denúncia, julgamento e aprovação do impeachment pelo Congresso Nacional; as eleições municipais que provocaram um esvaziamento eleitoral do PT; e a operação Lava-Jato. Esses fatos formaram um pano de fundo para o retorno e aguçamento de uma concepção de mundo dualista para enquadrar a realidade do quadro político. Isso envolve militantes e dirigentes de vários partidos, tais como PT, PCdoB, Psol, etc., intelectuais em geral e professores em particular, analistas da grande mídia, tais como Veja, O Globo, etc., ou seja, um amplo circuito de formação de opinião não coerente, no sentido de convergências.

Alguns atores estabeleceram na sua narrativa a vitória da “direita”, entendida como tal os partidos e personalidades públicas que foram a favor do impeachment: PSDB, DEM, PSB, PPS e grande parte da antiga base aliada dos governos sob o domínio do PT, em primeiro lugar o PMDB.O mesmo se diz em relação à baixa votação do PT nas últimas eleições municipais. Outros repetiram a mesma narrativa anterior. Os exemplos são muitos. Basta ler as edições mais recentes dos meios de comunicação nacional. Só se fala e se escreve em “direita e esquerda”, “conservadores e progressistas”, até a bizarra díade “capitalismo de direita e capitalismo de esquerda”. Sem deixar de mencionar o já velho “golpismo” e o “fora, Temer”.

Estou convicto de que essa é a visão hegemônica — no sentido de direção — dos que “sabem” e tentam persuadir os que “sentem”. Os que “sentem” formam uma enorme massa populacional, na qual existe: a) um conjunto de “visões espontâneas”, peculiares, em que está configurado na própria linguagem um bloco de noções e de conceitos e não simples palavras vazias de conteúdo; b) nas religiões populares, um sistema de crenças, superstições, opiniões, modo de ver e agir; c) e, também, a herança das velhas tradições passadas. E qual o entendimento dos que “sentem”, os simples, qual o senso comum, a filosofia “vulgar” e popular, que é apenas um conjunto desagregado de ideias, opiniões, que não é possível separar dos que “sabem”? É muito complexo esse entendimento. Seguramente, recebem, dos que “sabem”, uma adaptação do “aristotelismo positivista”, uma lógica formal com os métodos das ciências físicas e naturais. Reproduzem, portanto, uma conduta simplificadora e classificadora dos fatos.

É verdade que desde os anos 1950 ocorrem no Brasil enormes transformações na sua estrutura econômica e social herdada do passado. O capitalismo foi se fortalecendo e seu desenvolvimento foi um elemento progressista. Existe, atualmente, um complexo parque industrial, fortaleceu-se o setor da indústria pesada. E, simultaneamente, há capitalismo de Estado que abrange empresas poderosas, como a Petrobrás e outras. Também na agricultura se desenvolveu o capitalismo com a introdução e a multiplicação de equipamentos e novas tecnologias, incluindo a informática. Nos últimos 50 anos uma população eminentemente rural passou a ser eminentemente urbana. Hoje, nossa economia faz parte do bloco das mais desenvolvidas do planeta, com todas as velhas e novas desigualdades

Vivemos hoje numa democracia consolidada. Comemoramos, recentemente, 28 anos da Constituição de 5 de outubro 1988. Dois presidentes foram afastados via impeachment, uma garantia da própria Carta e dos valores democráticos estabelecidos nela. Há uma pluralidade de partidos políticos, uma forte rede de meios de comunicação, jornais, revistas, uma diversidade de religiões. Uma poderosa rede de ensino público e privado. Um mundo cultural — cinema, teatro, música, livros — altamente diversificado. Além do mais, vivemos no mundo globalizado, cheio de enormes desafios e novas possibilidades e, sobretudo, maiores responsabilidades. Entramos assim, definitivamente, no “Ocidente”, com uma “sociedade civil” de estrutura muito complexa.

O significado dessas modificações e suas implicações podem servir para avaliar se ainda é valida a opinião dominante, condicionada pela mentalidade e por uma visão dicotômica. Mentalidade que pensa em enquadrar a realidade brasileira na oposição conceitual entre pares. Estou convencido de que devemos buscar uma noção de política fundamentada não no antagonismo dicotômico sem solução, mas no princípio da “interdependência”, talvez com a capacidade única de garantir um novo ordenamento baseado na cooperação e na reciprocidade.

À guisa de conclusão, gostaria de lembrar que os nossos velhos e jovens professores continuam ensinando aos jovens estudantes de hoje as antigas visões dicotômicas dos mestres do pensamento positivista. Chego ao final com uma frase de Marx (1818-1883), escrita em 1867, no prefácio da primeira edição da conhecida obra O capital, referindo-se aos ultrapassados e arcaicos positivistas. Diz bem do nosso drama presente: “Somos atormentados não só pelos vivos, como também pelos mortos. Le mort soisit le vif” (o morto se apodera do vivo).
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*Gilvan Cavalcanti de Melo é membro do diretório nacional do Partido Popular Socialista e editor do Blog Democracia Política e novo Reformismo

Um comentário:

Martim Berto Fuchs disse...

"O significado dessas modificações e suas implicações podem servir para avaliar se ainda é valido a opinião dominante, condicionada pela mentalidade e por uma visão dicotômica. Mentalidade que pensa em enquadrar a realidade brasileira na oposição conceitual entre pares. Estou convencido que devemos buscar uma noção de política fundamentado não no antagonismo dicotômico sem solução,

mas no princípio da “interdependência”, talvez com a capacidade única de garantir um novo ordenamento baseado na cooperação e na reciprocidade."

http://capitalismo-social.blogspot.com.br/2016/02/66-novo-sistema-eleitoral.html