sábado, 1 de outubro de 2016

Repensando lideranças públicas - Fernando Abrucio

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O conceito de esfera pública passa atualmente por intensas transformações. Um maior número de atores participa ou influencia as decisões coletivas, seja por causa da disseminação dos direitos e da informação para os cidadãos, seja em razão do surgimento de novas instituições atuando na democracia.

Muitas dessas novidades são positivas, mas também delas surgiram diversos problemas e desafios. Um dos mais importantes diz respeito a como formar lideranças públicas e de que maneira elas devem enfrentar a nova realidade.

O diagnóstico inicial é de que há uma sensação de "desarmonia da democracia", para usar os termos da cientista política Amy Gutmann. Nem as promessas de maior participação são aceitas como verdadeiras por parte substantiva dos cidadãos, nem a suposição de melhores decisões na democracia confirma-se na visão de muitos estudiosos.

Vigora em grande parte das democracias ocidentais a noção de que os políticos se autonomizaram frente aos eleitores. Para uma visão corrente na opinião pública, a solução passa pelo repasse do maior número de funções governamentais a técnicos, que seriam "honestos e sabem o que deve ser feito". Ora, se assim fosse, os burocratas de regimes autoritários, como o da União Soviética ou do Chile de Pinochet, não teriam roubado ou fechado os olhos para a questão dos direitos humanos.

Para outros pensadores, o problema estaria mesmo no eleitorado. Vale citar o trabalho de Jason Brennan ("Against Democracy"), que, ao constatar a enorme dificuldade de os eleitores entenderem minimamente o que está em jogo na política, propõe a distribuição do voto segundo o conhecimento. Se isso acontecesse, obviamente que os "menos informados (ou esclarecidos) " nunca teriam vez no processo eleitoral, e tal modelo não produziria melhores governantes, mas sim, maior assimetria entre os eleitores.

As soluções tecnocrática e elitista pecam por despolitizar o nítido descompasso que há hoje entre o mundo dos representantes e dos representados. Deve-se, ao contrário, pensar em como repolitizar essa relação. De um lado, por meio da criação de maiores espaços para os cidadãos entrarem na política e entenderem suas agruras, e, de outro, cobrando um comportamento mais responsável das principais lideranças públicas no que tange às suas propostas e decisões.

A análise de uma democracia ocidental pode tornar mais clara essa discussão. Basta sortear aleatoriamente um caso. Por exemplo, o Brasil, para fazer um sorteio sem nenhum viés. Nesse país latino-americano, desde as manifestações de 2013 cresceu o descontentamento com o sistema político. Isso foi agravado pelas descobertas da Operação Lava-Jato, pela condução estapafúrdia do processo de impeachment pelo ex-deputado Eduardo Cunha (que tem polpudas contas na Suíça) e, por fim, pela grave crise econômica e social herdada do governo Dilma, que trouxe desesperança a uma sociedade que, em sua maior parcela, melhorou de vida continuamente durante os vinte anos anteriores.

Em vez de jogar fora a política para resolver a crise, é preciso recuperá-la. Primeiro, abrindo a política a quem quer entrar nela. Para tanto, os partidos têm de mudar sua relação com a sociedade, aproximando-se dos movimentos sociais, dos lugares onde moram os mais carentes de direitos, das reuniões de associações de bairro e de tudo que possa dizer a respeito a coletividades, que devem ser ouvidas constantemente por quem exerce o ofício da política. Em outras palavras, os políticos não podem viver apenas no mundo oficial, dos legislativos e repartições públicas.

Os partidos precisam mudar sua dinâmica interna. Mais vida partidária além das eleições é um fator essencial para transformar o modus operandi padrão, norteado pela preocupação quase exclusiva com o momento eleitoral. Para atrair as pessoas para o cotidiano das agremiações, é preciso demonstrar que o debate feito pelos mais diversos militantes de fato tem impacto nas decisões da legenda. Obviamente que isso só será obtido reduzindo o poder das cúpulas partidárias, que é gigantesco no Brasil, onde há donos de siglas ou pequenas oligarquias reinantes. Limitações de tempo de mandato e mais eleições internas, para seleção de dirigentes ou de programas, são soluções para esse problema.

Ao mudar a lógica de funcionamento dos partidos, haverá mais estímulos para se atuar na política e, em boa parte dos casos, concorrer a cargos eletivos. É interessante observar nas eleições municipais atuais o aumento do número de candidatos que se apresentam como "não políticos". Mais à esquerda, alguns se apresentam como adversários da "classe política", embora suas campanhas sejam, em grande medida, financiadas pelo fundo partidário. Entre os cacarecos, sempre há que aqueles que seguem a lógica de Titirica, personagem (perigosamente) ambíguo, pois já atua como político, mas prefere se vender como palhaço.

Mesmo o candidato João Doria, alguém que tem experiência em cargos públicos e na militância partidária, prefere se intitular "administrador, e não político". Ora, todos eles são políticos e devem dizer que querem mudar a política, e não substituí-la pela revolução do proletariado, pelo circo ou pela gerência de uma empresa.

Evidentemente que os políticos devem se preparar melhor para os cargos que concorrem. Conhecimentos de gestão, particularmente na área pública, devem estar na cartilha de quem quer participar das disputas majoritárias. Um concorrente a prefeito deve saber o que faz o município, o papel do prefeito e quais são as ferramentas gerenciais e de políticas públicas que devem ser usadas para melhorar a vida nas cidades.

Construir uma carreira política é almejar ser uma liderança pública. E junto com o status dessa posição, surgem também as responsabilidades. O fato é que a responsabilidade democrática é hoje muito mais difícil do que no passado. As informações se alastram mais rápido e para mais pessoas, de modo que tudo que for dito ou feito pelos políticos será mais escrutinado.

Mesmo assim, muitos candidatos ainda preferem o caminho fácil de prometer o impossível para se eleger. Só que a dissonância entre o voto e o governo tem se tornado, cada vez mais, um dos principais motes para protestar e até tirar o governante eleito.

Na verdade, boas lideranças públicas são aquelas que antecipam questões que ainda não foram colocadas pela dinâmica eleitoral. O tema da Previdência Social, por exemplo, envolve o direito das próximas gerações, incluindo os que são crianças ou que sequer nasceram. Por isso, é muito difícil tratar dessa questão junto ao eleitor padrão. Mas o líder que se exime hoje das responsabilidades em relação ao futuro do país tenderá a tomar melhores decisões?

Um político de alto calibre não deve ter medo de defender aquilo que considere certo, quando alicerçado por evidências científicas e resultados de políticas públicas. Mais do que vencer, o papel da boa liderança pública é melhorar a qualidade do debate, para que a expressão do voto seja crescentemente consciente dos limites e possibilidades das decisões coletivas. Na política com P maiúsculo, o legado é mais importante do que a fugacidade do momento de glória eleitoral.

Buscar construir uma trajetória com propostas coerentes e factíveis não quer dizer que alguém possa ser, como político ou partido, dono da verdade. O diálogo e a negociação são a essência do jogo democrático. Sempre é possível encontrar caminhos do meio nas decisões coletivas, contanto que se tenha consciência dos desafios que ainda permanecem. A conversa contínua, tolerante e pluralista é a mais poderosa arma contra as polarizações falsas, que emperram o processo decisório e alimentam o ódio entre os cidadãos e suas posições políticas. As grandes lideranças públicas são aquelas capazes de fazer pontes entre os que pensam diferente. O Brasil, como se sabe, carece hoje de canais de diálogo para reconstruir seu pacto político e o modelo de desenvolvimento. E, por ora, não apareceram líderes sociais ou estadistas que sejam capazes de remover os fossos que nos cercam.

No mundo contemporâneo, os políticos não são as únicas lideranças públicas importantes. Figuras dos órgãos de controle e do sistema de Justiça ganharam proeminência em vários países, incluindo o Brasil. Há, sem dúvida alguma, muitos avanços em multiplicar as formas de fiscalização e punição dos que conspurcam a representação.

A Operação Lava-Jato merece elogios por encontrar e combater desvios com o dinheiro público. Mas seus líderes precisam, por vezes, entender melhor o seu papel na democracia. O famoso power point contra Lula não só atrapalhou a investigação em si como manchou a reputação do Ministério Público. Ao colocar o messianismo e a performance midiática à frente das leis e das instituições, seu efeito maior foi fazer o jogo da desmoralização barata da política, que seria o terreno dos desonestos.

Mas é preciso lembrar aos membros da Operação Lava-Jato que o combate ao arbítrio é tão ou mais relevante do que combater a corrupção. Essa ideia que liberais e democratas defendem há alguns séculos ainda é válida mesmo num mundo marcado por tantas transformações.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,

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