quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O colchão de 2017 - Maria Cristina Fernandes

- Valor Econômico

• Temer reagiu com agilidade para sobreviver ao biênio

Sob cerco, o presidente da República reage com agilidade na tentativa de sobreviver ao biênio que está para se iniciar. Com duas medidas, o saque nas contas inativas do FGTS e a proposta de reforma trabalhista, Michel Temer espichou o colchão sob o maior tombo do emprego na história e plantou a cizânia no movimento sindical.

Nenhuma delas terá produzido efeitos quando fevereiro chegar com tarifa de ônibus, IPTU, IPVA e material escolar. Do arsenal exibido pelo governo, no entanto, depreende-se estratégia de enfrentamento ao desalento da passagem de ano.

É uma reação mais focada na rolagem da impopularidade do que na redenção da lavoura. Busca garantir algum para quando as indenizações trabalhistas se esgotarem, sem indicar os recursos alternativos de que a construção civil se valerá quando 2018 chegar.

Aposta que o colchão, esticado, lhe dará prazo suficiente para aprovar a redução no custo do emprego e conter mobilizações populares, sempre custosas em tempos de recessão. Como o gasto público já extrapolou os recordes de todas as eras, foca nessas mudanças para ressuscitar o investimento.

Chamariz incerto para o investimento, a reforma trabalhista racha até mesmo centrais governistas como a Força Sindical, que tem no secretário-geral, João Carlos Gonçalves, o Juruna, o dirigente mais favorável. A divisão não apenas dificulta a reação a esta reforma como contamina a unanimidade que hoje une as centrais contra as mudanças na Previdência.

A proposta tem dois principais pontos. O primeiro é o de que o negociado entre os sindicatos e as empresas prevaleça sobre a legislação trabalhista, ressalvados direitos como o 13º, FGTS, licença-maternidade, aviso prévio e seguro-desemprego. O tema unificava as centrais desde que acompanhado do reconhecimento do delegado sindical. Ao acenar com a representação no local de trabalho, segundo principal ponto da reforma e velha demanda das centrais, represada por 13 anos de governo petista, o governo deixou os sindicalistas sem discurso a não ser aquele que vê na recessão período impróprio para mudanças legislativas.

Recairia sobre este delegado a negociação com a empresa da flexibilização dos contratos. O mandato se tornará alvo de disputas tão ou mais acirradas que aquelas por uma cadeira na Câmara dos Deputados.

O reconhecimento do delegado sindical tende ainda a enfraquecer o papel da justiça do trabalho, velha demanda empresarial que ganhou guarida inaudita não apenas no governo federal como nos tribunais superiores e na maioria do Congresso Nacional.

Coube ao deputado federal do PSDB gaúcho, Nelson Marchezan Jr., dar publicidade à estimativa de que a justiça do trabalho custou, no ano passado, o dobro das indenizações pagas no país. Sua condição de parlamentar que está para tomar posse como prefeito de Porto Alegre eleito com apoio de movimentos que lideraram manifestações referenda a tese de que algum respaldo popular há em torno desta agenda.

As mudanças empurram para baixo o sarrafo de um mercado de trabalho cada vez mais desigual. Categorias com maior capacidade de mobilização no Judiciário abrigam-se sob o manto da continuidade da Lava-Jato. Arrancam proteção do Executivo e do Legislativo e se distanciam de setores do funcionalismo público de Estados quebrados como o Rio de Janeiro ou o Rio Grande do Sul. Fosso ainda maior os separa dos 12 milhões de desempregados cuja renda é uma variável direta do desempenho da economia.

A reforma trabalhista vai na mão contrária da formalização galopante do emprego que, na era petista, incorporou milhões de trabalhadores sob o guarda-chuva da CLT. O texto hoje em discussão os desabriga para, teoricamente, fazer caber mais gente sob a marquise. Sinal de que a formalização virou um indigesto signo da desigualdade é o declínio permanente do emprego doméstico, categoria que, ao ter seus direitos ampliados, deixou de ser refúgio tradicional de mulheres de baixa renda em tempos de recessão.

Se a renegociação das dívidas estaduais que acaba de ser aprovada pelo Congresso sem condicionalidades não for vetada pelo presidente, a distância entre os trabalhadores do setor privado e aqueles que estão instalados em seus irremovíveis empregos públicos tende a se alargar até que uma quebradeira generalizada nivele todos por baixo.

O fosso chegou a mobilizar centrais como a Força Sindical que, em seus anos inaugurais, protestava contra os 'sanguessugas' do setor público. À medida em que foi incorporando sindicatos de servidores, a central se despiu do discurso e se mostrou avessa a propostas de reforma do Estado.
O enfraquecimento da justiça do trabalho, advindo da prevalência do legislado sobre o negociado, poria em risco a velha aliança entre sindicatos e a elite do funcionalismo. Esses setores sempre se valeram da força da justiça do trabalho para cimentar a unidade sindical contra reformas no mundo do trabalho, ainda que a descontinuidade do auxílio-moradia de procuradores de Curitiba guarde pouca relação com as licenças-prêmio dos professores de Anápolis, com a ausência do 13º do enfermeiro do Rio ou com as dificuldades do metalúrgico de Guarulhos em manter seu emprego.

A justiça do trabalho enfrenta ainda antagonismos crescentes com o Supremo Tribunal Federal. Duas decisões monocráticas do ministro Teori Zavascki este ano choveram na horta do negociado sobre o legislado ao reverter sentenças do Tribunal Superior do Trabalho contra a possibilidade de acordos coletivos de salário abordarem salário e jornada de trabalho.

No balanço do Diap, a atuação do Supremo no tema inclui ainda decisões contra o direito de trabalhadores aposentados pedirem a revisão de seus benefícios e a favor do desconto de dias parados de servidores públicos em greve.

O veto de Temer a renegociação das dívidas estaduais sem condicionalidades forçará o Congresso a revisitar o tema. Combinada à reforma trabalhista, a medida tende a reduzir (algumas) disparidades do mercado de trabalho, mas a PEC dos gastos esvazia o principal insumo da igualdade de oportunidades, o investimento público em educação, saúde e transporte.

A pinguela do presidente da República pode até arrebentar lá na frente mas adentra 2017 com a pinta de que, antes, vai entregar a mercadoria de quem encomendou seu mandato.

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