terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Os brasis – Arnaldo Jabor

- O Globo

No Rio, é pior. Lá, as favelas estão no meio da cidade, e é difícil proteger o mundo dos felizes. Tentaram tudo, os cariocas. Tentaram remover as favelas, cadastrar habitantes, exigir passaportes para saída e até botar fogo nos barracos. Criaram, então, as super-UPPs, cercadas de metralhadoras com licença para matar qualquer suspeito ou mesmo insuspeitos, apenas para manter vivo o temor dos miseráveis. Nada rolou, porque a patuleia de desgraçados nos morros se multiplicava como formigas e também por falta de munição para combater o hype dos neotraficantes armados até os dentes.

Inspirados pelo líder nazista Trump, que, depois da guerra civil americana, morrera selvagemente estuprado por muçulmanos, as cidades ergueram muros altos em torno das comunidades. Nada.

A única alternativa foi transformar as favelas em cidades-estado, como na Grécia antiga. Assim, surgiram pequenas ‘repúblicas’ como o Estado do Pavãozinho, o Município do Alemão, o Condado do Jacarezinho e outros pequenos redutos com vida própria, se bem que continuaram as guerras entre cidades-traficantes, como o Principado do Marcola ou o novo Resort da Maré.

Isso foi apenas o trailer de uma nova ordem para o país. Claro que nas últimas décadas os políticos não fizeram reforma alguma no Estado e, pior, desfiguraram todas as tentativas de sensatez e justiça na federação, e isso tudo culminou no ano festivo em que conseguiram prender o Moro e todo o Ministério Público, deixando para a instituição apenas funções básicas como águas e esgotos, matamosquitos e vigilância de prostíbulos. O STF foi transformado em Supremo Tribunal de Pequenas Causas, ornamentado por um grande retrato de Gilmar Mendes, Lewandowski e Toffoli, os pais da instituição. De vinte em vinte anos, condenavam defuntos prescritos.

Como todas as reformas essenciais foram ignoradas, Brasília foi virando uma espécie de parque temático, com muitas curiosidades, como o Teatro do Legislativo: os deputados ficavam no plenário esperando turistas e curiosos. Só então entoavam discursos inflamados sobre nossas grandezas e, em seguida, passavam o chapéu das propinas.

Mas era imprescindível haver reformas — o Brasil clamava por uma atitude patriótica.

Por isso, foi decretada a Neo-Federação Brasileira, em que o território nacional virou uma espécie de arquipélago de minipaíses — ilhas culturais e políticas autônomas. Chegamos mesmo a nomear a nação como o Arquipélago Nacional.

A principal ilha geopolítica era a Província de São Paulo, a mais rica, que ficou com o regime capitalista, apesar da economia mambembe. O Social-Nordeste foi entregue aos fiéis seguidores da ideologia bolivariana, como era o desejo dos finados petistas, e as ruínas da refinaria Abreu e Lima viraram objeto de culto. O sul do país finalmente foi reconhecido como a República de Piratini, enquanto o Rio virou uma república pentecostal, como já previra o maligno profeta Crivella, o pioneiro da sagrada estupidez, que elogiava a fome dos miseráveis como forma de chegarem a Jesus.

Entre esses novos estados-nação só existia a terra de ninguém, com os novos párias que vagavam sem nome — agora uma casta finalmente eterna, para sempre analfabeta e faminta.

Para desespero de alguns poucos humanistas presos em “campos de regeneração”, ressurgira a escravatura. Era preciso usar a inumerável mão de obra ociosa, paga com comida e senzalas em prédios da ex-Minha Casa Minha Vida.

A comunidade internacional recebeu bem nossa transformação em “arquipélago”.

E passaram a nos chamar de Os Brasis. Claro que fomos banidos dos emergentes, que mudaram o nome para Rics.

E aqui estou eu, na janela no trigésimo andar, cuspindo nos párias, lá embaixo. Eu já sofri grandes decepções, porque não acreditava numa harmonia futura. Eu achava que a máxima de Lévi-Strauss estava certa: “O Brasil vai sair da barbárie para a decadência sem conhecer a civilização”. Babaquice daquele francês.

Sim, graças àqueles precursores chamados injustamente de ‘corruptos,’ conseguimos organizar uma nova espécie de harmonia para nosso país. Assumimos finalmente que somos um país inviável. Somos o caos, a zona, o invencível adultério entre o público e o privado, somos a esculhambação transcendental que herdamos desde o descobrimento.

Assumimos nosso destino, nosso DNA bandido, nosso descaso pela sociedade. E, assim, estou feliz, porque organizamos a merda tradicional que nos formou. Vivam Os Brasis!”.l

Um comentário:

Fernando Carvalho disse...

O Jabor de vez em quando escreve bobagens. Quando ele incorpora o intelectual coxinha. Mas nesta crônica ele se superou. Adorei, amei,idolatrei. Li, até agora, uma meia dúzia de vezes, em todas me escangalhando de rir.
E Jabor escreveu esta crônica antes do festival de cabeças cortadas nos presídios do norte do país e dos acontecimentos do Espírito Santo. Sua sensibilidade de artista pressentiu o que aconteceria adiante e se antecipou colocando no papel, ou em caracteres digitais sua interpretação do Brasilzinho do nosso coração. Parabéns, Jabor!!!