quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Os divergentes - Míriam Leitão

- O Globo

STF faz contorcionismo para manter Renan. O país ficou sabendo ontem que se a pessoa for o senador Renan Calheiros tem a permissão para desrespeitar ordem judicial, virar as costas para o oficial de Justiça, deixá-lo numa antessala enquanto os assessores mentem sobre seu paradeiro. E ficou sabendo que é possível amputar-se uma das prerrogativas constitucionais dos cargos de comando do país.

O Supremo Tribunal Federal decidiu ontem que o senador Renan Calheiros pode continuar presidente do Senado, mas perde o direito de ocupar a Presidência da República por ser réu. É um contorcionismo difícil de entender, dado que são inseparáveis o cargo e suas prerrogativas.

Todos condenaram a atitude do senador Calheiros, que não aceitou sequer receber a ordem judicial para se afastar da Presidência do Senado e, portanto, não a cumpriu. Mas bastaram aos ministros as palavras condenatórias. Renan continua onde sempre esteve e seu expediente deu certo. Houve um tempo em que o mais conhecido dos princípios jurídicos era que ordem judicial se cumpre primeiro, e depois dela se recorre ao próprio Judiciário. Mas ontem inaugurou-se uma divergência. Se o cidadão for Renan Calheiros, sobre ele recaem apenas admoestações pelo comportamento, mas nenhuma punição. Como disse o ministro Marco Aurélio Mello — o voto vencido, junto com os ministros Luiz Edson Facchin e Rosa Weber — “triste exemplo para o jurisdicionado de uma forma geral”. Ele definiu como “inconcebível, intolerável e grotesco” o descumprimento da ordem judicial e sua recusa de até tomar conhecimento dela. Marco Aurélio disse que temia que prevalecesse a “visão acomodadora”. Foi a que prevaleceu.

O ministro Celso de Mello, do alto do seu decanato, abriu o voto divergente: o senador pode continuar presidente do Senado, mas a Presidência do Senado, enquanto estiver sob o seu comando, perde a atribuição de estar na linha sucessória. O Senado sai da linha com Renan Calheiros, mas ele permanece no posto.

O ministro Luís Roberto Barroso não votou por se declarar impedido. No mais, convergiram com o voto divergente os outros ministros, menos Gilmar Mendes, que não votou por estar viajando, mas disse em bom som, e maus modos, que discordava do relator. A sessão de ontem foi uma sucessão de condolências ao ministro Marco Aurélio Mello, mas ninguém explicitava o motivo pelo qual ele estava sendo tão consolado. Estava subentendido. Referiam-se à declaração do ministro Gilmar Mendes que defendeu o impeachment do colega por ele ter dado a liminar pedida pela Rede Sustentabilidade e mandado afastar Renan Calheiros da Presidência. A propósito, Gilmar Mendes disse recentemente que concordava com o que a Câmara havia votado sobre juízes. Lá está, em um dos artigos, que é crime manifestar-se publicamente sobre ação em andamento.

Os ministros fizeram uma ginástica mental para manter de pé a tese de que, se o presidente da República não pode ser réu, todos os seus substitutos legais também não podem, no entanto um réu pode exercer o cargo que tem a prerrogativa de ser, na situação atual, o segundo na linha sucessória. Para resolver a insanável contradição do raciocínio, partiram o voto do ministro Marco Aurélio em dois e todos votaram a favor de que enquanto a Presidência do Senado for ocupada pelo réu Renan Calheiros o cargo perde essa prerrogativa.

Houve argumentos pedestres, como o de que não há a iminência de que Renan tenha que substituir o presidente. Ora, eminências, isso não sabemos. Ademais, a decisão deveria ter sido tomada pelo princípio e não pelas circunstâncias.

Renan Calheiros ao fim do dia soltou nota aplaudindo a “patriótica” decisão do STF. E disse que a recebia com “humildade”. A mesma que não teve antes. “O que passou não volta mais”, disse ele agora que venceu. Entre os vários erros institucionais dos últimos dias, foi o fato de Renan ter suspendido as sessões do Senado enquanto era discutido o seu futuro. É como se o Senado fosse ele. A única atitude correta teria sido respeitar a liminar, afastar-se e recorrer ao próprio STF. Mas ele confrontou uma ordem judicial e venceu. O que passou permanecerá como uma sombra do dia em que a Suprema Corte deu um voto estranho e divergente.

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