quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Renan, o intocável - Merval Pereira

- O Globo

Agora Renan tem razões para se achar acima da lei. É uma pena que o Supremo Tribunal Federal tenha tido que rever decisão que já havia obtido a maioria dos votos, para debelar uma crise institucional que só aconteceu porque o presidente do Senado, Renan Calheiros, transformou um caso pessoal em disputa de Poderes, como se ele sozinho fosse o Senado.

Com o resultado do julgamento de ontem da liminar de Marco Aurélio Mello, que o afastava da presidência do Senado por ter se tornado réu de um processo no próprio STF, Renan tem sobejas razões para considerar-se acima da lei.

Desacatou o STF ao recusar-se a receber a intimação do oficial de Justiça, e ainda foi mantido por maioria refeita às pressas para evitar que a crise se alastrasse.

A incoerência das duas votações, uma a 3 de novembro, a outra ontem, por si só mostra quão difícil deve ter sido organizar a nova maioria. Foi formada por três votos dados pela 1ª vez — Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli —, e três dos ministros reformularam seus votos, a começar pelo decano Celso de Mello, com papel preponderante nos dois julgamentos.

No primeiro, fez questão de dar voto mesmo após Toffoli pedir vista do processo. Com a decisão, Celso de Mello parecia querer dar a maioria à tese de que réu não pode ficar na linha de substituição do presidente, neutralizando o pedido de “vista obstrutiva” de Toffoli.

Mas ontem ele retificou parte do voto proferido no julgamento de mérito da ADPF 402, alegando que constatou, ao ler “o voto escrito do relator”, que em suas conclusões Marco Aurélio Mello “foi além da compreensão que tive”. Ontem ele também votou fora de hora, sendo o primeiro em vez de o último, como a indicar a seus pares o caminho a seguir.

Disse: “Agentes públicos que detêm titularidades funcionais que os habilitam constitucionalmente a substituir o chefe do Executivo da União, em caráter eventual, caso tornados réus criminais perante esta Corte, não ficarão afastados ipso facto dos cargos de direção que exercem na Câmara, no Senado ou no Supremo. Apenas sofrerão interdição para exercício do ofício eventual e temporário de presidente.”

Mais dois ministros mudaram seus votos, reduzindo a maioria anterior aos três que repetiram ontem a posição anterior: o relator Marco Aurélio, Rosa Weber e Edson Fachin. Teori Zavascki mostrou-se preocupado com as consequências políticas : “Em nada contribui para julgamento sereno e seguro a manutenção de cenário político tenso, que propicia críticas pejorativas de caráter pessoal”.

Luiz Fux, que votara a favor da tese de que réu não pode estar na linha de substituição, considerara que a Constituição estabelece regras que resguardam a dignidade e a moralidade do cargo de presidente. Ontem, mudou o entendimento, ressaltando a questão política: “Não teríamos o mais tênue temor, estamos agindo com responsabilidade política que nos impõe. […] Não há na Constituição a previsão de que recebida a denúncia o presidente do Senado ou da Câmara deva ser afastado. Podemos construir esse afastamento por analogia com o que a Constituição prevê para o presidente. Mas o periculum in mora (perigo de demora na decisão) é inverso”.

É verdade que até o final do julgamento os ministros podem mudar seus votos, e o da ADPF 402 ainda não terminou, pois Toffoli pediu vista e ainda não liberou o processo ao plenário. Mas o que houve ontem foi, a meu ver, entendimento equivocado de construção de acordo político para garantir a governabilidade.

O STF deveria ter mantido sua coerência, evitando a insegurança jurídica que mudança de tal dimensão em questão de dias provoca. Além do que já havia jurisprudência firmada, mais radical ainda, com o afastamento de Eduardo Cunha não só da presidência da Câmara como do mandato.
O Senado, que já havia dado uma interpretação criativa ao impeachment da então presidente Dilma, livrando-a da perda dos direitos políticos, ontem fez a mesma coisa em relação ao senador Renan Calheiros, fatiando a pessoa dele do presidente do Senado.

A sensação de que houve acordo para acalmar a reação do Senado é inevitável, depois que os ministros do STF reuniram-se com o vice-presidente do Senado, Jorge Viana. O próprio Renan antecipou para quem quisesse ouvir qual seria a decisão do plenário do STF já na noite de terça-feira. Na manhã de ontem, já se sabia até mesmo que Celso de Mello daria o primeiro voto.

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