quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A insegura política de não balançar o barco - Cristian Klein

- Valor Econômico

• Especialista compara sistema prisional à Guerra do Vietnã

Especialista no sistema penitenciário brasileiro, o analista criminal Guaracy Mingardi visitou 26 unidades da Federação - só não foi ao Piauí - numa pesquisa sobre inteligência prisional para o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), feita entre outubro de 2015 e maio de 2016. Inteligência prisional é o setor das secretarias estaduais da área - sejam denominadas de Segurança, Justiça ou Administração Penitenciária - responsável, por exemplo, em evitar rebeliões e massacres nos presídios, como os que ocorreram em Manaus e Boa Vista e chocaram o país nas últimas duas semanas.

Contra a barbárie que produz cenas de corpos decapitados e esquartejados, afirma o especialista, há barreiras institucionais (e civilizatórias). Mas estas perdem força diante do jogo de custo e benefício da administração do sistema. Mingardi diz que a inteligência prisional existe em todos os Estados e costuma, sim, detectar e antecipar problemas como fugas e motins - numa imagem diferente à do caos generalizado que a guerra entre facções vem passando à opinião pública. "Em alguns lugares, a inteligência prisional funciona. Em outros, existir não é sinônimo de funcionar. E, em muitos casos, funciona mas a direção do sistema não aceita suas recomendações", afirma.

Se há, por exemplo, indício de que detentos estão cavando um túnel para escapar, autoridades tendem a pesar muito na balança o custo de mobilização de equipes, de recursos e os riscos de se revistar uma ala do presídio e, no fim das contas, a informação não proceder. O comportamento padrão é interferir o mínimo possível, mesmo quando as evidências sugerem que o certo seria agir e encarar os fatos de frente.

Mingardi compara a situação prisional brasileira aos dois tipos de informação produzidos pelos americanos durante a Guerra do Vietnã. De um lado, a CIA, a agência de inteligência civil dos Estados Unidos, relatava os reveses do conflito. Constatava que a maior parte das baixas no inimigo era de civis e não de vietcongues e que o moral dos soldados americanos estava no chão. Do outro lado, o Exército sempre dizia que estava ganhando a guerra. Os militares falavam o que os chefes queriam ouvir. Deu no que deu.

É o mesmo tipo de postura adotado, em regra, no Brasil por governadores, secretários de Segurança e diretores de presídios. Para eles, afirma o analista, a lei de ouro do sistema prisional é "não balançar o barco". Com medo de perderem o cargo, gestores fazem de tudo para evitar rebeliões. Selam acordos com líderes de facções e, aos poucos, presos ganham cada vez mais espaço e quebram protocolos básicos de qualquer sistema penitenciário. Têm acesso a celulares, armas, drogas e até às chaves da cadeia.

Em São Paulo, a suposta paz de cemitério permitiu a expansão do Primeiro Comando da Capital (PCC). Hoje, a facção domina 80% dos presídios paulistas, e se expande pelo país, afirma o especialista, desde a onda de ataques que aterrorizou o Estado e matou 564 pessoas em maio de 2006. " Você não ouve falar em rebelião em São Paulo desde 2007. Se houve foram meia dúzia em dez anos. Antes havia até quatro por semana", diz Mingardi, ex-investigador da polícia e cientista político com mestrado pela Unicamp e doutorado pela USP.

Graças ao acordo em São Paulo, o PCC lançou-se ao projeto de nacionalização de sua organização que esbarra nos interesses de outras facções, cuja escala econômica e criminal ainda é regional. A aliança do carioca Comando Vermelho (CV) com a Família do Norte (FDN) amazonense é uma reação em defesa de mercados. O PCC desafiou os interesses do CV quando passou a controlar a rota do Paraguai, que escoa a cocaína boliviana, a mais comprada no Brasil. A droga colombiana, mais branca e valorizada, é vendida aos países ricos e à fatia mais elitizada do consumidor brasileiro, explica Mingardi, ex-subsecretário nacional de Segurança Pública.

A explosão de violência de massacres como o do Compaj, em Manaus, ou na resposta do PCC, em Boa Vista, não é, porém, uma decorrência necessária da competição. A maior probabilidade de matança está onde há expressiva maioria, por exemplo de 90% contra 10%, de uma facção sobre a outra - caso de Amazonas e Roraima. Ou onde a inteligência prisional não funciona bem. Em Santa Catarina, que tem um bom sistema de inteligência na avaliação de Mingardi, a maior facção, o Primeiro Grupo Catarinense (PGC), aliado do CV, está em presídios da capital e do Sul do Estado, enquanto os integrantes do PCC ficam em cadeias do Norte catarinense.

De acordo com o especialista, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a separação dos presos por facções é a principal medida a ser tomada no curto prazo. No médio, é a retomada do controle das cadeias, com a imposição de regras, não necessariamente muito rígidas. No longo prazo, é a redução da política de encarceramento em massa. Entre 2003 e 2014, a população brasileira cresceu 12% enquanto a quantidade de presos no país aumentou 100%. São Paulo tem 21,7% da população nacional e quase 40% da carcerária. "Quanto mais se prende, mais estas organizações ficam perigosas", afirma. Com cerca de 640 mil detentos, o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, atrás de Estados Unidos, China e Rússia.

Para o sociólogo Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência, da USP, é preciso um censo rigoroso e uma política de desencarceramento, com a adoção de penas alternativas para crimes de baixa periculosidade. Em sua opinião, juízes mandam prender, frequentemente, pelo receio da desmoralização, pois aplicam punição alternativa e o Executivo não cumpre sua parte. Sobre a corrupção de agentes do Estado - de agentes penitenciários à cúpula do Judiciário - Adorno considera que é um problema, embora o relativize, destacando a prevalência da impotência e da conivência. "O crime organizado, em regra, prospera porque tem apoio e aquiescência das autoridades, mas não sou daqueles que acham que todos os policiais ou administradores são corruptos. Muitos são impotentes ou ameaçados", diz Adorno, para quem também é necessário se investigar aqueles que têm interesse que o crime prospere: os promotores de segurança privada. "Muitos estão ou já estiveram ligados ao poder público", ressalta.

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