quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

De Curitiba a Manaus - Maria Cristina Fernandes

- Valor Econômico

• Justiça dividida entre a hiperatividade e o descaso

O presídio Anísio Jobim e a Lava-jato têm em comum recordes na proporção de presos provisórios. A convergência levou juristas com atuação no sistema prisional e advogados com clientes na operação a partilhar críticas ao instituto. A coincidência para aí. As razões são opostas. A permanência prolongada de réus na masmorra de Curitiba é fruto da hiperatividade do Judiciário. O palco da degola amazonense é produto do seu descaso.

Ex-advogado de um réu da Lava-jato (Eduardo Cunha), ex-titular das secretarias de Segurança Pública, de Justiça e da antiga Febem de São Paulo, Estado que mais encarcera no país e ex-integrante do Conselho Nacional de Justiça na gestão que deu início aos mutirões carcerários, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, já trafegou por todos os lados da história.

A intimidade não o aproximou do Judiciário no tema. Ao deixar ontem reunião de breves 30 minutos com a ministra Carmen Lúcia que, na véspera, havia apontado situação grave e explosiva nos presídios, Moraes não se furtou em contrapor que o barril de pólvora vem de anos - "não é de agora" - e apenas neste governo seria tratado como prioridade.

No comando do CNJ, prerrogativa conferida aos presidentes do Supremo, a ministra já havia se contraposto a Moraes quando, ao assumir o Conselho, contestou um ministro categórico sobre a população carcerária, estimativa que suas primeiras andanças no cargo lhe provaram imprecisa.

Numa das visitas que fez aos Estados, a ministra ouviu o presidente de um Tribunal de Justiça confessar ter sido incapaz de precisar à imprensa quantos seriam os fugitivos de uma rebelião por não saber o número de presos da unidade.

Noutra peregrinação, ao Rio Grande do Norte, foi dissuadida de visitar o presídio de Alcaçuz, em Parnamirim, porque as autoridades locais não tinham controle do pátio interno da unidade vedado até mesmo para os agentes penitenciários.

Criado para exercer o controle do Judiciário, o CNJ, face à provisoriedade da situação penal da população carcerária, acabou assumindo delegações na fiscalização do sistema, anteriormente de competência do Ministério da Justiça. Confrontam-se visões distintas do problema. De um lado, o Executivo, sensível a pressão de governadores, polícias e bancadas da bala por mais encarceramento. Do outro, um Conselho que, impotente frente à provisoriedade penal, avaliza o recrutamento de jovens pelas facções criminosas dentro dos presídios

O conjunto de 16 entrevistas que deu início ao projeto de história horal do CNJ, conduzido pela Fundação Getúlio Vargas, é revelador das limitações de um Conselho impotente tanto em relação ao ativismo de juízes da Lava-jato quanto à passividade dos tribunais nos Estados onde se acumulam contingentes carcerários com até 65% de penas provisórias, como no Amazonas.

"É muito ruim você dar um comando para o qual não possa exigir o cumprimento...Acho que isso acaba fragilizando a força que tem o Conselho", diz a juíza do Rio, Andrea Pachá, integrante da primeira turma de conselheiros do CNJ.

Ao ser entrevistado pela FGV, o ex-corregedor do Conselho, Gilson Dipp, contou como o ministro Gilmar Mendes foi sensibilizado para o projeto dos mutirões carcerários, a iniciativa mais exitosa, conquanto breve, do Conselho, em reduzir a provisoriedade penal. Dipp sugeriu que o presidente do CNJ fosse conhecer uma vara de execução penal no terceiro andar de um prédio sem elevador caindo aos pedaços em pleno sertão piauiense. "Ele desceu branco, lívido - 'Dipp, precisamos fazer alguma coisa disso'".

O CNJ até que fez, mas esbarrou no corporativismo do judiciário, mais afeito a preservar regalias do que distribuir seus fartos recursos com equidade. Nelson Jobim conta, por exemplo, que os juízes de primeiro grau faziam pressão contra o nepotismo não necessariamente por convicção mas porque só os desembargadores podiam nomear.

O Conselho formado para desatar os nós do Judiciário comportava discussões bizantinas como a necessidade de seus integrantes usarem toga nos julgamentos ou terem passaporte diplomático. O ex-ministro relembra relato de um diretor que mandara buscar um integrante do Conselho no aeroporto mas este se recusara a entrar porque o carro era branco -"Mandei pegar um taxi e proibi o reembolso".

As passagens mais dramáticas das entrevistas ficam por conta de ex-integrantes que se veem diante do dilema de punir colegas juízes, ainda que a pena não prive magistrados pegos com a boca na botija de receber sua aposentadoria integral.

Cesar Asfor Rocha, ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, Corte à qual serviu por 20 anos, não disfarça seu inconformismo com o ativismo de alguns de seus colegas que chegaram a se empolgar com o papel fiscalizador do Conselho.

Asfor Rocha liderou no STJ a decisão que invalidou as provas da Castelo de Areia, operação que poderia ter antecipado em três anos a operação Lava-jato não fosse o entendimento da Corte de que denúncia anônima, ainda que comprovada por investigação da Polícia Federal, não poderia embasar processo judicial. O ex-ministro, que já disse ter decidido segundo a jurisprudência do momento, surpreenderia o meio jurídico ao pedir aposentadoria no ano seguinte. No ano passado, o ex-ministro apareceu nas gravações clandestinas do ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado. Citado pelo ex-presidente José Sarney como um canal por meio do qual se poderia buscar aproximação com Teori Zavascki, Asfor Rocha negou ter sido procurado para fazer ponte com o ministro.

Na entrevista à FGV, Asfor Rocha desdenha do papel do Conselho. "O CNJ é uma espécie de Big Brother....Os conselheiros se acham o máximo! Porque eles chegam, nunca foram reconhecidos... Aí em qualquer Estado em que ele chega, na porta do avião está o presidente do Tribunal de Justiça, do Tribunal Eleitoral, do Trabalho. Ele começa a dizer: 'Ué, tudo isso para mim?'... e pensa que realmente pode tudo e que vai ser para sempre. E não é".

Por vias tortas, o depoimento acaba por revelar as dificuldades do Judiciário em acertar a mão na crise do sistema penitenciário. Face a um sistema policial que lota prisões e joga para a plateia, a Justiça custa a revisitar o papel contramajoritário que a República de Curitiba relegou ao desuso.

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