sábado, 14 de janeiro de 2017

Identidade nacional? - Eliana Cardoso

- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana

Sendo cosmopolita, liberal e livre-cambista, qualquer forma de nacionalismo me causa desgosto, pois atrás dele enxergo o discurso demagógico e o risco da xenofobia. Quando ouço um amigo dizer que "o" americano é ingênuo; "o" alemão, duro; "a" brasileira, sexy; "o" carioca, malandro e "o" italiano, mafioso, sinto que o diálogo terminou. Essas generalizações refletem não apenas a crença de que uma sociedade tem uma cultura nacional identificável. A cultura da própria nação seria melhor do que a das outras nações, e se não o fosse, coração, pelo menos seria nossa.

Fenômeno relativamente moderno (em contraste com outros tipos tradicionais de lealdade, como à família ou ao clube de futebol), o nacionalismo nasceu na Europa tendo como base duas objeções. A objeção ao Iluminismo - que argumentava que, no fundamental, todos os povos são os mesmos. E a objeção ao aumento dos movimentos migratórios.

O nacionalismo recebeu um impulso significativo da Revolução Francesa. Ao derrubar as instituições locais e ao reduzir o poder da igreja, criou a ideia de que o governo pertencia ao povo, que agora devia lealdade ao Estado. Da Europa, o nacionalismo rapidamente se espalhou em muitas direções. Nas Américas, serviu principalmente para formar novos Estados.

Como o nacionalismo prometia que as rápidas mudanças do século XIX podiam ser contrabalançadas pelo apego à tradição, as classes médias abraçaram a lealdade ao país natal e encontraram no nacionalismo a solução para suas inseguranças. No seu lado mais negativo, o nacionalismo ajudou a motivar o engajamento em duas grandes guerras.

Hoje políticos prometem muros para barrar os desterrados. As manifestações dos filhos de imigrantes na França mostram que eles não foram integrados à sociedade e ainda são percebidos como estrangeiros.

Não seria possível negar que a cultura influencia o comportamento social e a personalidade do indivíduo. Mesmo reconhecendo que os seres humanos têm uma natureza comum, inata, transmitida pelos genes (que explica nosso funcionamento básico, como por exemplo, sentimentos de medo, amor e alegria), sabemos que a cultura - com suas histórias, tradições e valores - modifica a forma de expressão desses sentimentos. Mas há um salto mortal entre essa observação e a tentativa de definir "a identidade" dos nascidos em determinado território de fronteiras reconhecidas.

Se tivesse mais espaço e menos coisas a dizer, repetiria por inteiro o poema "Salmo" de Wislawa Szymborska (em "Um Amor Feliz", tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras). Contento-me com alguns versos:

"Oh, como são permeáveis as fronteiras dos países!
Quantas nuvens flutuam impunemente sobre elas,
quanta areia do deserto passa de um país a outro,
quantas pedras da montanha rolam para terras alheias
[...]
E como se pode falar de uma ordem qualquer,
Se nem dá para separar as estrelas
Para saber qual brilha para quem?
E esse condenável dispersar da neblina!
[...]
Só o que é humano pode ser verdadeiramente estrangeiro.
O resto é bosque misto, trabalho de toupeira e vento".

A poeta é sábia. Pensadores, nem tanto. Pois não resistem à tentação de teorizar sobre o caráter nacional. No ensaio "Inglaterra, nossa Inglaterra" (em "Como Morrem os Pobres e Outros Ensaios", tradução de Pedro Maia Soares, Companhia das Letras), George Orwell escreve: "Devemos admitir que as divisões entre nação e nação se fundamentam em diferenças reais de atitude. Até recentemente julgava-se correto fingir que todos os seres humanos são muito parecidos, mas, na verdade, quem é capaz de usar seus olhos sabe que a média do comportamento humano difere enormemente de país para país. Coisas que podem acontecer em um país não poderiam acontecer em outro". (Pois é. Trump jamais se elegeria nos EUA).

Apesar da dificuldade de definir características nacionais, Orwell acredita que pode estabelecer um padrão para milhões de indivíduos diferentes, pois algumas generalizações seriam aceitas por todos. Por exemplo. Os ingleses não são "musicais como os alemães ou italianos". (Como? Bem... os Beatles e Amy Winehouse ainda não tinham nascido). E na Inglaterra, "a pintura e a escultura nunca floresceram como o fizeram na França". (Turner não conta? E falando de escultores, prefiro Henry Moore a Rodin).

Mas vamos em frente. A lista em que George Orwell identifica as características dos ingleses inclui: a capacidade de se unirem em momentos de crise, o amor às flores, a coleção de selos, o gosto pela carpintaria, palavras cruzadas e futebol. (Em que essas qualidades nos permitem distinguir um povo de outro, me escapa).

Orwell continua. "O sistema eleitoral inglês é uma fraude quase aberta. Numa dúzia de formas óbvias, ele é manipulado no interesse da classe endinheirada". (Não diga!)

E o juiz inglês "é um símbolo da estranha mistura de realidade e ilusão, democracia e privilégio, impostura e decência, a sutil rede de compromissos pela qual a nação se mantém em sua forma familiar". (Familiar não apenas na Inglaterra...) "A nação está unida por uma corrente invisível. Em tempos normais, a classe dominante rouba, administra mal, sabota, nos conduz para o buraco; mas deixem a opinião popular realmente se fazer ouvir, [...] e será difícil que não reaja".

E então? Que lhe parece? Para mim, o retrato da Inglaterra enquanto nação lembra o de muitas outras...

No Brasil, também existem escritores em busca de uma identidade nacional. A versão mais encontradiça lista nossas características a partir do contato da cultura europeia com a indígena e a africana. Desse contato teria resultado um convívio inter-racial "ameno" e desse convívio, nasceu o Carnaval, o samba e a felicidade do brasileiro. Se você acha antigo esse retrato e pede algo novo para interpretar uma realidade que exige reformas concretas, concordo com você.

Para o político, entretanto, o importante é criar um mito que sirva à propaganda. Fernando Pessoa sabia disso quando escreveu:

"Há só uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação - a construção ou renovação e a difusão consequente de um grande mito nacional. De instinto, a humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível. O mundo conduz-se por mentiras; quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá que mentir-lhe deliberadamente, e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira que criou".

E, apesar dessa clarividência, Fernando Pessoa se entrega a um nacionalismo místico em "Mensagem". Imagina a Europa como um corpo de mulher, o cotovelo direito fincado na Inglaterra; o esquerdo, na Itália; Portugal, o rosto que fita o ocidente. O longo poema conta a história de Portugal através das figuras de seus heróis até à época dos descobrimentos. Em seguida, a expansão ultramarina representa a vitória do querer e da ousadia sobre a ignorância. Finalmente, o poema evoca Dom Sebastião.

Alhures e em prosa, o autor diz acreditar na renovação do mito sebastianista, graças a suas raízes no passado e na alma portuguesa, num texto em que convoca seus compatriotas a se embebedar desse sonho e a encarná-lo. "Feito isso [...] o sonho se derramará sem esforço em tudo o que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada [...] Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império".

Seguindo esses princípios, "Mensagem" termina conclamando os irmãos:

"Tudo é incerto e derradeiro
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a hora!
Valete, Fratres".

No poema de Fernando Pessoa, o nevoeiro é a condição necessária para surgir o salvador da pátria. Vade retro! Fico com a neblina de Szymborska, a que não respeita fronteiras.
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Eliana Cardoso, economista e escritora

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