domingo, 26 de fevereiro de 2017

O descompasso - Míriam Leitão

- O Globo

O país está vivendo um enorme contraste entre os indicadores do mercado financeiro e a economia real. De um lado, a bolsa bate recorde em vários anos, o risco-país despenca, as previsões de juros são cada vez menores. De outro, o desemprego continua em alta, a crise dos estados passa por momentos dramáticos, as empresas permanecem com dificuldades e sem capacidade de investimento.

Dos EUA, onde mora e dá aulas na Universidade Johns Hopkins, a economista Monica de Bolle enxerga nessa contradição um grande risco. Avalia que o principal indicador para se medir a saída da crise é a taxa de desemprego e não há sinais no horizonte de que o problema melhore a curto prazo. Com isso, a insatisfação com o governo e a economia permanecerão elevados, o que tornará mais difícil aprovar a agenda de reformas e os ajustes necessários para reequilibrar as finanças públicas do país.

— O Brasil corre um sério risco de viver um efeito semelhante ao que aconteceu nos EUA com a eleição de Trump. Obama colocou a economia nos trilhos, mas a recuperação foi desigual e não houve criação de empregos para todas as classes sociais. Isso pode se repetir por aqui em 2018, e o mercado financeiro parece ignorar esse cenário — afirmou.

No caso dos EUA, o desemprego estava baixo quando Trump foi eleito. O problema é que ele levantou a bandeira de que no passado os americanos tinham sido mais felizes e prometeu “fazer a América grande de novo”. Na avaliação de Monica, esse sentimento de nostalgia pode ser explorado no Brasil pelo ex-presidente Lula, que na memória de muitos brasileiros está associado ao período de bonança, apesar de ter sido parte do problema que nos atingiu.

Monica diz que a crise de superendividamento no Brasil afetou todos os setores da economia: governo federal, estados, empresas e famílias. Em uma situação dessas, a recuperação é sempre lenta. Foi assim com os EUA após o colapso do sistema financeiro em 2008 e também com países da Europa, como Grécia, Espanha, Portugal e Espanha. O que agrava a nossa situação é a descrença nos políticos provocada pelo que tem sido revelado na Lava-Jato, e que coloca na berlinda os responsáveis por conduzir o ajuste:

— Em 2014, a gente tinha uma economia desarrumada, mas com sensação de bem-estar porque a inflação e o desemprego eram baixos. Por isso a presidente Dilma se reelegeu. Em 2018, ao contrário, teremos uma economia já um pouco ajustada, mas com uma sensação de malestar, por causa do desemprego. A chance de um governo de descontinuidade é grande e o que foi aprovado, como o teto de gastos, pode ser revertido.

Semana passada ficou claro esse descompasso entre o Brasil que o mercado comemora — de alta na bolsa e queda dos juros, do dólar, do risco-país —e o Brasil que ainda enfrenta uma recessão severa onde o desemprego não dá trégua. A taxa chegou aos 12,6%. Mesmo que o país aumente o número de pessoas empregadas, como prevê a FGV, o desemprego continuará afetando os indicadores de confiança e de consumo.

Monica elaborou um gráfico para medir o grau de insatisfação econômica, com a soma da taxa de desemprego e a taxa de inflação. Em 2015, esse índice de malestar atingiu o ápice, em 19,2%, com inflação de 10,7% e desemprego de 8,5%. Para este ano, a expectativa é de uma taxa de 16,43%, ainda muito elevada. O conforto com a queda da inflação será neutralizado pela continuidade do desemprego. Esse é o Brasil real.

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