quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O irrealismo do STF – Editorial | O Estado de S. Paulo

Incomodados com as críticas relativas à lentidão dos processos penais no Supremo Tribunal Federal (STF), alguns dos ministros togados têm clamado por realismo na avaliação da Suprema Corte. Seria injusto – dizem eles – comparar a velocidade processual de um juízo de primeira instância com a de um tribunal constitucional. Na prática, pedem que o trabalho do STF não seja avaliado tão somente pelo crivo da Constituição – que lhe atribui competência tanto para questões constitucionais como para alguns casos penais, em razão do foro privilegiado, além de ser um órgão recursal –, e sim por um olhar que leve em conta as circunstâncias concretas do trabalho dos ministros.

Esse realismo, que tanto querem os ministros da Suprema Corte, não é aplicado, no entanto, em algumas decisões do STF sobre o trabalho dos outros Poderes. Exemplo dessa incongruência foi a decisão, em dezembro do ano passado, do ministro Luiz Fux interrompendo a tramitação do projeto de lei com as Dez Medidas Anticorrupção, sob o argumento de que a Câmara não havia respeitado o rito próprio das leis de iniciativa popular. Em vez de ir ao Senado, o projeto devia voltar à Câmara, onde fora aprovado com emendas.

Liminarmente, o ministro Fux criou uma regra e mandou o Congresso segui-la, ainda que isso significasse ignorar o voto dos deputados. Na lógica da decisão, o que o ministro achava devia prevalecer sobre a vontade da Câmara.

Naturalmente, a decisão liminar do ministro – que, aparentemente insatisfeito com o trabalho que lhe corresponde, como se lhe parecesse pouco, se dedica também a assuntos reservados ao Legislativo – causou uma enorme confusão. Simplesmente, o Senado e a Câmara não sabiam o que fazer diante da disjuntiva de desrespeitar a decisão de Fux ou desrespeitar o voto dos deputados.

Na sexta-feira passada, foi anunciado o desfecho do impasse: a Secretaria-Geral da Mesa da Câmara vai conferir os mais de 2 milhões de assinaturas de apoio à proposta de iniciativa popular e, depois disso, o projeto poderá ser enviado ao Senado.

Certamente, o Congresso tem mais a fazer do que conferir todas as assinaturas. No entanto, diante da extravagante decisão de Fux, o melhor mesmo talvez seja conferir uma por uma as assinaturas, checando minuciosamente sua validade, leve isso o tempo que levar e custe o que custar. Assim, ficarão ainda mais evidentes as perniciosas consequências da interferência do Judiciário em temas que só cabem ao Legislativo. A liminar de Fux entrará para os anais do Congresso como uma decisão absolutamente irrealista, cujo único efeito prático foi postergar o processo legislativo.

Além de irrealista, a decisão de Fux padece de um grave erro conceitual. Na lógica da liminar, um projeto de lei de iniciativa popular não poderia sofrer alterações, sob o risco de desvirtuar a vontade da população. Ao Congresso caberia apenas aprová-lo ou rejeitá-lo. Como os deputados fizeram alterações no texto original, o projeto das Dez Medidas deveria retornar à Câmara para que fosse tramitado corretamente, em sua versão inicial.

O ministro Fux esqueceu, porém, que, numa democracia representativa – como é a brasileira –, a vontade popular se manifesta prioritariamente por meio do Congresso Nacional. Os deputados e os senadores eleitos representam de fato e de direito a totalidade da população, ou “o povo”, como diz a tradição democrática. Certamente, o apoio de 2 milhões de assinaturas a um projeto de lei tem um peso político, mas trata-se de um equívoco grave presumir que a vontade da sociedade está fielmente expressa naquelas assinaturas.

Ao proibir o Congresso de fazer emendas num projeto de lei apoiado por 2 milhões de assinaturas, o ministro Fux calou a voz de mais de 140 milhões de eleitores – conforme dados do TSE –, que não foram ouvidos durante a colheita das assinaturas e que, segundo a liminar, já não poderão mais falar por meio de seus representantes.

Ainda que possa ser celebrada em algum palanque populista, a contraposição entre vontade popular e vontade parlamentar é sempre uma medida contra a democracia. Ao STF não cabe, portanto, incentivá-la.

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