terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O suicídio da capivara - Luiz Roberto Nascimento Silva

- O Globo

Os moradores da orla da Lagoa Rodrigo de Freitas já encontraram alguma vez as capivaras que a habitam ou ao menos ouviram falar delas. Quando me mudei para o bairro, cheguei por bom tempo a duvidar de sua existência. Como não as encontrava, duvidava como São Tomé. Depois do primeiro encontro, eles se sucederam, seja com uma delas ou com a família toda reunida.

Pois bem. Eis que num desses dias fui fazer minha caminhada diária. Nesse período de verão e nesse nosso específico, quem gosta de andar ao ar livre está tendo que fazê-lo de manhã bem cedo ou no fim do dia. Como não sou madrugador e convivo mal com um desnecessário horário de verão, minha preferência é andar no fim do dia. Não está mais quente, e ainda se podem ver as cores desmaiando na cabeceira das montanhas e se espraiando nas águas da lagoa já escura.

Caminhava no sentido do Corte do Cantagalo quando avistei uma das capivaras, provavelmente a mãe por seu grande tamanho. Pastava perto de um quadrado que tem um dístico esculpido no cimento: “Vida é milagre. Dê um sorriso para ela”. Ainda que estivesse chateado e cheio de problemas na cabeça, sorri internamente pela dádiva de existir e poder presenciar cenas como essa.

Segui meu roteiro, que normalmente dura uma hora entre ida e volta, com direito a uma água de coco no final. Não é bom bebê-la antes porque atrapalha o ritmo da caminhada. Quando estou bem disposto, alterno alguns trechos com corrida sem maiores pretensões. Não me incomodo quando sou ultrapassado por jovens correndo em ritmo de maratonistas africanos. Tudo certo.

Estava voltando quando vi uma moça com um iPhone se dirigindo à capivara para tirar uma foto. Ela continuava placidamente no mesmo lugar de quando comecei meu percurso. De repente, a capivara correu e mergulhou na Lagoa.

— Veja: a capivara mergulhou. Ela não sabe nadar, berrou a moça.

Parei e tive vontade de dizer-lhe que ela havia assustado a capivara e que esta, para se defender, pulara na água. Pensei em dizer também que nós, humanos, somos muito mais perigosos que os animais e que eles sabem disso. Por educação nada disse, fiquei quieto.

— Moço, faça alguma coisa! A capivara desapareceu. Ela não sabe nadar. Ela vai morrer. Onde ela está? Ela não volta à tona.

— Moça, a capivara não morreu. Ela não se suicidou. Ela se assustou e pulou n’água. Só isso. Fique tranquila.

— Como ficar tranquila. Cadê ela? Já passou muito tempo. Ela não voltou à tona. Sumiu. A capivara morreu. A capivara morreu, e não estamos fazendo nada. O senhor não faz nada.

A essa altura, com a moça enlouquecida com seu iPhone assassino na mão, berrando, esqueci que capivara é mamífero. Comecei a crer que havia presenciando e participado do suicídio da minha conhecida e, pior, que eu era sem querer cúmplice disso. Incorporei a confusão dela à minha própria.

Ainda tentei acalmar a moça, inutilmente. Afastei-me em silêncio. Senti uma brisa refrescar minhas costas molhadas. Ainda ouvi a moça falando ao longe. Com tanta coisa na cabeça, teria agora que conviver com mais essa. Lembrei-me no caminho do livro “Os mamíferos”, editado pelo MEC, que tinha na capa dura uma foto de uma onça pintada brasileira. Ele povoou parte da minha infância na Rua da Matriz até me levarem a um zoológico, o que só ocorreu bem depois.

Entrei em casa. Fui direto para o computador e para o buscador. Estava ali com todas as letras: a capivara é um mamífero e adora a água. Suspirei aliviado. Não tinha participado do suicídio da capivara! Uma sensação de alegria, equilíbrio e lucidez percorreu todo meu corpo no início de uma nova noite carioca de verão Fahrenheit.

*Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura no governo Itamar Franco

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