domingo, 19 de março de 2017

Ácido ascórbico político | Vera Magalhães

- O Estado de S. Paulo

No terreno das analogias da carne podre do prato com a carne queimada da política

No dia 19 de fevereiro, escrevi uma coluna intitulada “Carne queimada”. À espera da nova lista do Janot, que finalmente se materializou na semana passada, analisava que eram inúteis as tentativas dos políticos de acordos ou operações-abafa para se salvar, porque quem fosse “marcado com a cruz escarlate da Lava Jato será carne queimada”.

E eis que da metáfora à literalidade mais aterradora, descobrimos nesta semana que, no Brasil, não só o que consumimos nas urnas, mas também nas gôndolas refrigeradas dos supermercados, está adulterado.

Os paralelos entre a Lava Jato, que completou três anos no mesmo dia em que, na sua maior operação, a Polícia Federal veio nos lembrar que a carne é fraca e a propina grassa em todos os terrenos da vida nacional, não são poucos.

O ambiente que permitiu prosperarem tanto um esquema duradouro de pilhagem à Petrobrás e demais estatais quanto outro em que se formou um oligopólio de carne no Brasil que, agora sabemos, operava à base de adulteração de produtos e suborno a fiscais, foi o mesmo: o lulopetismo e sua construção de um capitalismo dos amigos, voltado a perpetuar um partido no poder.

Foi sob os auspícios de Lula e do BNDES que a BR Foods e a JBS, agora no centro da operação Carne Fraca, viraram duas potências do setor.

Durante a ilusória bonança econômica da era Lula, o surgimento desses gigantes dos frigoríficos ajudou a embalar a narrativa de um Brasil pujante, que dava lições ao resto do mundo de como empreender e virar um “país grande”. Os empresários da carne passaram a integrar o rol dos amigos do rei e a ser perfilados como os grandes campeões nacionais, ao lado de figurões de outros setores, como, vejam só, Eike Batista.

O crescimento desses impérios da proteína animal se deu à base da concentração de marcas antes concorrentes sob o mesmo guarda-chuva, bem como dos produtores e frigoríficos associados. Por isso, é hipócrita e inútil a tentativa das holdings de fazerem anúncios assépticos adotando a versão empresarial do “eu não sabia” de Lula e Dilma. Elas são, sim, responsáveis pela gororoba que seus associados misturaram na carne que eles venderam com sua marca reluzente e seus artistas globais.

E aqui voltamos ao terreno das analogias da carne podre do prato com a carne queimada da política. Assim como fizeram os frigoríficos, cotejados com o fato de que passaram do prazo de validade, os políticos continuam a tentar injetar na própria carne um ácido ascórbico legal que lhes dê uma sobrevida eleitoral.

Uma proposta de “anistia” ao caixa 2 aqui, outra de tirar a legislação eleitoral da Constituição para ser manipulada sem nenhum controle sanitário ali, essas tentativas de disfarçar o cheiro do produto estragado vão se sucedendo em velocidade cada vez maior à medida que o abatedouro de reputações da Lava Jato avança.

A dificuldade de fazer a mandracaria prosperar é que, nos três anos que nos separam do início das investigações do que viria a ser o petrolão, as instituições amadureceram e não vão retroceder ao que eram.

O instituto da delação premiada foi consolidado, os acordos de cooperação internacional, tanto no plano judicial quanto no setor financeiro, avançaram, foi mudada a jurisprudência sobre início do cumprimento da pena a partir da condenação em segunda instância e pela primeira vez uma operação casada da Polícia Federal, do Ministério Público e da Justiça levou figurões à cadeia e recuperou bilhões de reais desviados em tempo real.

Tudo isso fez com que a Lava Jato virasse um patrimônio da sociedade. Tentar injetar um papelão institucional para dar consistência a políticos que viraram uma massa amorfa e putrefata será mais difícil que vender cabeça de porco como linguiça.

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