sábado, 18 de março de 2017

Esquerda despedaçada

Para sociólogo Alain Touraine, é preciso reconstruir a esquerda em torno dos direitos culturais, respeito ético, democrático e multicultural

Helena Celestino | Valor Econômico | Eu & Fim de Semana

RIO Existe esquerda sem utopia? A pergunta perpassou a campanha eleitoral holandesa e continua a ser repetida com insistência nessa turbulenta temporada pré-eleitoral da França e em outros países europeus com eleições marcadas para 2017, o ano de todos os perigos para a Europa.

Por esquecer que sonhar com um mundo melhor é preciso, a social-democracia vive a sua pior crise, evidenciada na derrota em 13 das 19 eleições, a última delas nesta semana na Holanda, na qual a esquerda limitou-se a um papel de figurante praticamente sem "fala" durante a ferrenha disputa entre o líder da extrema direita, o xenófobo Geert Wilders (chefe do Partido da Liberdade), e o primeiro-ministro conservador, o otimista Mark Rutte (Partido Popular para a Liberdade e a Democracia), nessa renovação do Parlamento, crucial para começar a desenhar a nova cara da União Europeia.

Num país que sempre se viu como tolerante e progressista, com desemprego baixo e renda média acima do Reino Unido, o Partido Trabalhista da Holanda flerta com a irrelevância, amargando a evidência de que o tradicional apoio da classe trabalhadora migrou para partidos mais acolhedores ao sentimento de inquietude do eleitorado, sejam eles da esquerda ainda comprometida com a transformação social ou do nacionalismo da extrema-direita.

A França vive o mesmo drama. Ao abandonar as promessas de mais justiça social da campanha, François Hollande bateu recordes de impopularidade e transformou-se no primeiro presidente francês a não se candidatar à reeleição. Deixou nos ombros de um " socialista idealista" - Benoît Hamon, de 49 anos, ex-ministro da Agricultura - a missão de salvar a social-democracia da tragédia anunciada pelas pesquisas sobre a intenção de votos nas eleições presidenciais de abril/maio. Representante da "nova esquerda", a mesma do Podemos, na Espanha, e do Syriza, na Grécia, Hamon derrotou nas primárias do Partido Socialista a chamada "esquerda confiável", aquela que abraçou o liberalismo para enfrentar a crise econômica e saiu abalada dos anos de recessão.

Ele empolgou parte dos jovens com a proposta de uma renda universal de € 700 para todos entre 17 e 25 anos - a faixa etária que amarga um desemprego de 25% -, mas tem poucas chances de chegar ao segundo turno. Pesquisas indicam que deverá ficar num constrangedor quarto lugar, atrás dos dois mais prováveis vencedores do primeiro turno, a extremista de direita Marine Le Pen (Frente Nacional) e a revelação política da temporada, o jovem centrista Emmanuel Macron (En Marche), e mesmo atrás do representante da direita tradicional, François Fillon (Republicano) - investigado por corrupção, mas com apoio maior do que qualquer força de esquerda.

"Não existe esquerda sem utopia", diz o sociólogo Alain Touraine, professor da École de Hautes Études de Sciences Sociales. "Estou muito empenhado em redefinir o ideal social e humano da esquerda hoje."

"Reconstruir a ideia de esquerda é criar um outro modelo. Vimos um esforço para inventar um social-liberalismo nos anos 90 com [Tony] Blair no Reino Unido e [Gerhard] Schröeder na Alemanha, mas não funcionou, e a ideia de esquerda hoje vai mal", afirma o sociólogo Michel Wieviorka, também professor da École des Hautes Études de Science Sociales.

É a hora da verdade para a social-democracia, movimento popular com um passado de lutas por melhores condições de trabalho desde o fim do século XIX e corrente política a consolidar o estado de bem-estar social no pós-guerra. Impotente diante do crescimento da extrema direita e em conflito aberto com a "nova esquerda", os partidos socialistas e trabalhistas mantêm o poder em apenas nove dos países europeus. Apenas em Portugal reina um clima de otimismo com a aliança entre socialistas, comunistas e o Bloco de Esquerda - coligação batizada de "geringonça" pela oposição -, com forte apoio popular: pacificou o clima político e está tirando o país da crise.

A desesperança socialista na França repete-se na Alemanha, onde o SPD, o mais antigo partido social-democrata (criado em 1895) acaba de lançar o ex-presidente do Parlamento Europeu Martin Schulz candidato para as eleições de setembro, na tentativa de estancar o declínio da organização que perdeu 500 mil filiados e a metade dos seus eleitores: na época de Willy Brandt (1913-1992), o partido tinha 40% do eleitorado; nas últimas votações estava reduzido a 20%.

"É, antes de tudo, o resultado do governo Schroeder e as reformas neoliberais feitas nos anos em que foi chanceler. Defendia o Estado social, mas mudou de lado na barricada", analisa o professor alemão Peter Whal, especialista em economia mundial.

Os decepcionados voltaram-se para os populistas de direita e cresce a influência dos nacionalistas reunidos no Alternativa para a Alemanha, aproveitando-se do mal-estar causado em parte da população com a chegada de quase 1 milhão de refugiados em 2015. Em alguns Estados, Baden-Württemberg, por exemplo, são mais fortes do que a social-democracia, mas a Democracia Cristã da chanceler Angela Merkel continua liderando as pesquisas. "A tendência é garantir a estabilidade", diz.

A turbulência no Reino Unido só agravou o sentimento de crise vivido no Partido Trabalhista ainda antes de o país escolher sair da União Europeia, empurrado pelo nacionalismo do movimento populista de ultradireita Ukip. O novo líder do trabalhismo, Jeremy Corbyn, trava uma batalha com as correntes moderadas, mas dirige uma organização esvaziada, incapaz de ter peso na mais importante decisão tomada nesta geração: o rompimento das relações entre Reino Unido e União Europeia, autorizado esta semana pelo Parlamento. Analistas acham que o país caminha para ser um Estado com um único partido, tendência já delineada pela pouca importância dada à oposição pela primeira-ministra conservadora Theresa May.

"O referendo sobre o Brexit foi o primeiro a expor esta divisão cultural entre os confortáveis com o ritmo das mudanças - da tecnologia ao casamento gay - e aqueles que querem retardar o relógio e redescobrir suas raízes étnicas, religiosas e nacionais", escreveu Lionel Barber, no "Financial Times".

Mesmo em países sem uma extrema direita em ascensão, a social-democracia está claudicante. O duelo entre as esquerdas, por exemplo, deixou a Espanha sem conseguir formar governo durante meses, por causa da rivalidade entre o Podemos, formação nascida do movimento dos "indignados", e o Partido Socialista Espanhol, próximo da política de corte de gastos e de benefícios sociais para conter a crise do euro.

No Partido Democrata italiano (PD), divisões internas derrubaram o primeiro-ministro, Matteo Renzi, levando o seu partido a empatar nas pesquisas com o Cinco Estrelas, um movimento contra o establishment e a União Europeia. Mas o fantasma maior é a derrocada do Pasok, partido social democrata grego que naufragou com o país. Detinha 40% do eleitorado, ficou com 4%, sendo suplantado no poder pelo Syriza, do primeiro-ministro Alexis Tsipras, encarnação inédita da esquerda radical no poder.

As democracias avançadas estão vivendo uma mudança profunda, concordam acadêmicos e analistas políticos. Está ligada à chegada de novos países ao mercado mundial - levando à desindustrialização das nações europeias e dos EUA - e à popularização das novas tecnologias, cada uma delas capaz de abrir um mundo de novas possibilidades - o smartphone, por exemplo, deu voz a todos os cidadãos -, mas com enorme impacto no nível de emprego.

"A desindustrialização deveria ter levado a social-democracia a fazer programas para readequar a mão de obra desamparada. Foi funesto para a esquerda perder a chave social. Entregou-a para os fascistas" diz o historiador Daniel Aarão Reis, que está mergulhado na história da esquerda para dois livros sobre a Revolução Russa.

É bem mais longe que o professor vê o início da crise da social-democracia europeia. Após a Segunda Guerra (1939-45), os socialistas cresceram, impulsionados por uma aliança entre a classe operária e as classes médias. Com o tempo, houve uma proeminência cada vez maior dessas classes médias sobre a classe operária, cujo peso social foi diminuindo com a desindustrialização. Nos anos 60, entraram em cena os movimentos das mulheres, dos negros, dos gays, até então desconhecidos pela tradição política.

"Isso foi ótimo, mas os socialistas não fizeram a síntese da luta pela justiça social com esses movimentos identitários. A classe operária se sentiu abandonada e as pesquisas mostram que 80% dos eleitores dos socialistas votam em Marine Le Pen", diz Reis.

A depressão da social-democracia contrasta com a agressividade dos líderes da extrema direita na Europa, que descrevem um cenário negro em seus países, insuflando o medo do terrorismo, do desemprego, do totalitarismo e da imigração. "Criou-se um clima desfavorável para a esquerda na França, e esse cenário é o mesmo em toda a Europa", afirma Touraine.

Aparentemente a esquerda está sem resposta para as inquietações dos eleitores num ano em que a Europa passa por um teste existencial com eleições e o Brexit. Como reagir?

"Devemos nos centrar na nossa luta: direitos sociais, solidariedade e igualdade", escreveu Sergei Stanishev, do bloco socialista no Parlamento Europeu.

"É preciso reconstruir a esquerda em torno dos direitos culturais. Respeito ético e democrático, respeito ao multiculturalismo e às religiões", diz Touraine.

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