sexta-feira, 10 de março de 2017

Incesto e crise social - José de Souza Martins

- Valor Econômico ||Eu & Fim de Semana

A divulgação de episódios de incesto no Brasil não provocou aqui o debate científico necessário. São eles indícios de deterioração social. Sua contrapartida, o tabu do incesto, é poderosa força na organização e preservação das sociedades. Radicado no inconsciente coletivo, se perde a eficácia, a sociedade se extravia. O incesto tem se manifestado nos muito denunciados estupros em família. São a mais expressiva evidência do advento do estado de anomia, de ausência de normas reguladoras da conduta. É quando a sociedade agoniza.

Um dos casos, no Maranhão, em 2010, envolvia um pescador, pai de vários filhos tidos com duas filhas. Quase ao mesmo tempo, ocorreu outro caso num bairro de classe média de São Luís. No interior do Piauí houve várias ocorrências pela mesma época. Num caso, em Minas, constatado por agentes de saúde, também na zona rural, o pai procriou com uma das filhas e, mais tarde, com uma neta.

Não se trata apenas de casos de violação intencional. Há incestos decorrentes do desconhecimento do parentesco de sangue dos próprios envolvidos em relações carnais. As migrações e a desorganização da família têm contribuído para a disseminação das ocorrências.

Num bairro da cidade de São Paulo, há poucos anos, a mãe de uma moça, já casada e mãe de dois filhos, começou a desconfiar que seu genro era também seu filho - um filho que dera em adoção quando ainda jovem. E era. Num país de migrantes, não é estranho que os dois filhos de sexos opostos, separados pelo destino, viessem a se encontrar sem saber do parentesco tão próximo e do risco do matrimônio incestuoso.

As transformações nos costumes, a fragilização das instituições e dos próprios mecanismos de controle social têm criado situações que favorecem o incesto mesmo que os envolvidos não saibam do risco. Indícios de homens que não são pais biológicos de filhos que acreditam seus constituem um item adicional no elenco dos fatores de favorecimento do incesto. O acaso social, na geração seguinte, pode levar ao encontro e matrimônio de irmãos, culturalmente interditados ao concurso sexual e reprodutivo. O incesto pode, ainda, ser favorecido por sua banalização crescente em filmes pornográficos cujo tema é o da relação carnal entre irmão e irmã, mãe e filho, filha e pai.

Houve época em que a sociedade brasileira estava mais atenta aos riscos do incesto e o evitava de maneira drástica. Um episódio trágico, ocorrido em São Paulo, envolveu a família de Peixoto Gomide, governador no início da República. Tinha ele várias filhas e tornara-se protetor de um jovem, Batista Cepelos, advogado que se tornaria reconhecido e famoso poeta. Gomide apoiou-lhe os estudos na Faculdade de Direito, e Cepelos se tornou frequentador de sua casa e amigo de suas filhas. Quando uma delas comunicou ao pai que ela e o poeta pretendiam ficar noivos, ele a levou para um dos cômodos da casa e a matou com um tiro, suicidando-se em seguida. Cepelos era também seu filho, com uma escrava. O incesto era socialmente insuportável. Apenas proibir o casamento era revelar o relacionamento que macularia toda a família. Silenciar era o mesmo que manter o risco de um dia vir à tona o crime de quebra do tabu, já que provavelmente se tratava de paternidade suspeitada por outras pessoas. Cepelos se matou, mais tarde.

Até há algum tempo o incesto era ocorrência de exceção, sujeita aos terrores do medo relativo à violação da mais sagrada das proibições. No mais das vezes inconsciente, torna-se um drama socialmente destrutivo ao chegar à consciência.

O avanço da ciência, em particular o da medicina, também pode estar invadindo o terreno do proibido. Algumas dessas invasões serão reinterpretadas e assimiladas, a cultura popular reformulará seus parâmetros de diálogo com a cultura científica. Já os transplantes de órgãos podem estar incidindo nas interdições pétreas do tabu do incesto. Entre doador e receptor pode estabelecer-se o que é de fato risco de relação incestuosa.

Ainda não se tem clareza de como reage o inconsciente coletivo e de como se manifestam nesses casos as estruturas sociais profundas, que regulam a vida em sociedade e as regras do proibido e do permitido. Em pesquisa sobre "Linchamentos - A Justiça Popular no Brasil", cobrindo mais de meio século, constatei, em diversas regiões, que uma proporção das ocorrências se refere ao linchamento de pais putativos, como o padrasto ou o companheiro da mãe de menina ou adolescente por ele violada. Nesses casos, na concepção popular, o pai putativo é revestido dos atributos simbólicos e sagrados da paternidade de sangue, o que faz da violação um ato incestuoso. O mundo muda, mas o tabu do incesto permanece e se redefine.

*José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto), dentre outros. 

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