domingo, 19 de março de 2017

Três anos de espanto | Míriam Leitão

- O Globo

É um avanço uma operação ter aniversário comemorado. No país em que a impunidade dos crimes do colarinho branco sempre foi a regra, uma operação completar três anos, e isso ser lembrado e comemorado, é um avanço. O que mudou após esses três anos de espanto? Principalmente nós. O país parou de achar que a corrupção podia ser tolerada e aprendeu nas 38 fases que a doença era mais profunda e disseminada.

A corrupção ameaça tudo o que conquistamos nas últimas décadas, a começar da democracia, a mais valiosa das conquistas. Os negócios sujos entre empresas e políticos se espalharam tanto e passaram a ser tão onipresentes que distorceram a representação política. Quem teria sido eleito sem o dinheiro da corrupção? Quem seriam hoje os governantes e os parlamentares? Como seriam as campanhas sem a abundância criminosa do dinheiro dado em troca de favores e vantagens?

O que a Lava-Jato fez por nós foi tirar o véu e permitir uma visão aguda e dolorosa da cena brasileira. Era pior, mais vasto, mais perigoso do que imaginávamos. Mesmo o mais bem informado dos brasileiros não tinha noção, no dia 17 de março de 2014, do que sabemos hoje.

Um dos maiores empresários brasileiros, que pela natureza das suas empresas não tem que fazer contratos nem negócios com o governo, me disse na semana passada que ele não ignorava a corrupção, conhecia há anos os envolvidos e não tinha ideia de que fosse tão disseminada.

Nem os procuradores de Curitiba sabiam. Os policiais federais que há três anos faziam campana na porta de um edifício em São Paulo onde mora o doleiro Alberto Youssef não tinham a mais remota noção do tamanho do fio que puxariam a partir daquela noite em março. Hoje, o doleiro passa ao regime aberto, mas o fio ainda continua sendo puxado.

Os números da LavaJato são todos superlativos. Acordos já foram feitos com 42 países, são 200 os réus. O juiz Sérgio Moro já condenou 127 pessoas. Nas duas listas do procurador-geral da República ao STF, estão listados pelo menos 150 políticos com prerrogativa de foro.

Esse é um dos vários temas que a Lava-Jato colocou com urgência na agenda do Brasil: é preciso rediscutir o foro privilegiado. Em debate na sexta-feira no jornal O GLOBO, na série “E agora, Brasil?”, iniciei assim uma pergunta sobre o assunto à ministra Cármen Lúcia: “Na República, a igualdade é a regra...” e fui corrigida: “Não é a regra, é o princípio.” Se a igualdade é o princípio da República, não podemos ser orwellianos e aceitar ter tantos mais iguais que os outros.

Os políticos tentam mudar as regras em vez de respeitar os princípios. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse ao jornalista Jorge Bastos Moreno que a lista fechada — que Maia chama com o nome elegante de lista pré-ordenada — deu certo em outros países e que deve ser adotada agora para tornar as campanhas mais baratas. Esse ordenamento imporá o voto no escuro. O voto de cada um irá para uma lista feita pelas direções partidárias. Quando precisamos de mais visibilidade, os políticos propõem menos visibilidade.

Nas últimas semanas, os políticos retomaram o movimento pela aprovação da autoanistia. “Basta uma noite no Congresso e a Lava-Jato acaba”, disseram os procuradores federais em Curitiba. Se houver uma noite como essa, o país não a aceitará. Essa é a mudança que houve nos últimos três anos. Hoje, conhecemos a verdade. Ela é, como se sabe, libertadora.

Três anos de espanto e ainda estamos descobrindo novos crimes. No momento em que o país soprava as três velas do bolo, a corrupção sujou até a mesa do brasileiro. A Carne Fraca não faz parte da Lava-Jato, mas do mesmo movimento de não ser tolerante com o crime. Um fiscal impedido de fazer seu trabalho denunciou à Polícia Federal. Ela investigou por dois anos. Em um ano de escuta legal, a PF descobriu que até de grandes frigoríficos compravam fiscais.

O país é outro, hoje, três anos depois daquela noite em que policiais federais perderam Youssef em São Paulo e foram encontrá-lo em São Luís. Seria bom se os governantes entendessem a natureza da transformação. O ambiente não é de “deter a sangria”, nem próprio para acordões nas noites de Brasília. O Brasil quer escrever uma nova história.

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